quinta-feira, 11 de julho de 2013

Nietzsche e o conhecimento

Dois aforismos 

*** Gaia Ciência, § 333 ***
 O que significa conhecer. – Non ridere, non lugere, neque detestari, sed intelligere! [Não rir, não lamentar nem detestar, mas compreender!] disse Spinoza, da maneira simples e sublime que é sua. No entanto, o que é intelligere, em última instância, senão a forma na qual justamente aquelas três coisas tornam-se de uma vez sensíveis para nós? Um resultado dos diferentes e contraditórios impulsos de querer zombar, lamentar, maldizer? Antes que seja possível um conhecer, cada um desses impulsos tem de apresentar sua visão unilateral da coisa ou evento; depois vem o combate entre essas unilateralidades, dele surgindo aqui e ali um meio-termo, uma tranquilização, uma justificação para os três lados, uma espécie de justiça e de contrato: pois é devido à justiça e ao contrato que esses três impulsos podem se afirmar na existência e conservar mutuamente a sua razão. A nós nos chega à consciência apenas as últimas cenas de conciliação e ajuste de contas desse longo processo, e por isso achamos que intelligere é algo conciliatório, justo, bom, essencialmente contrário aos impulsos; enquanto é apenas uma certa relação dos impulsos entre si. Por longo período o pensamento consciente foi tido como o pensamento em absoluto: apenas agora começa a raiar para nós a verdade de que a atividade de nosso espírito ocorre, em sua maior parte, de maneira inconsciente e não sentida por nós; mas eu penso que tais impulsos que lutam entre si sabem muito bem fazer-se sentidos e fazer mal uns aos outros: – a violenta e súbita exaustão que atinge todos os pensadores talvez tenha aí a sua origem (é a exaustão do campo de batalha). Sim, pode haver no nosso interior em luta muito heroísmo oculto, mas certamente nada de divino, nada repousando eternamente em si, com queria Spinoza. O pensar consciente, em particular o do filósofo, é a espécie menos vigorosa de pensamento e, por isso, também aquela relativamente mais suave e tranquila: daí que justamente o filósofo pode se enganar mais facilmente sobre a natureza do conhecer.

*** Gaia Ciência. § 344 ***
 Em que medida também nós ainda somos devotos – Na ciência as convicções não têm direito de cidadania, é o que se diz com boas razões: apenas quando elas decidem rebaixar-se à modéstia de uma hipótese, de um ponto de vista experimental e provisório, de uma ficção reguladora, pode lhes ser concedida a entrada e até mesmo um certo valor no reino do conhecimento – embora ainda com a restrição de que permaneçam sob vigilância policial, a vigilância da suspeita. – Mas isso não quer dizer, examinando mais precisamente, que a convicção pode obter admissão na ciência apenas quando deixa de ser convicção? A disciplina do espírito científico não começa quando ele não mais se permite convicções? ... É assim, provavelmente; resta apenas perguntar se, para que possa começar tal disciplina, não é preciso haver já uma convicção, e aliás tão imperiosa e absoluta, que sacrifica a si mesma todas as demais convicções. Vê-se que também a ciência repousa numa crença, que não existe ciência “sem pressupostos”. A questão de a verdade ser ou não necessária tem de ser antes respondida afirmativamente, e a tal ponto que a resposta exprime a crença, o princípio, a convicção de que “nada é mais necessário do que a verdade, e em relação a ela tudo o mais é de valor secundário”. – Esta absoluta vontade de verdade: o que será ela? Será a verdade de não se deixar enganar? Será a vontade de não enganar? Pois também desta maneira se pode interpretar a vontade de verdade; desde que na generalização “Não quero enganar” também se inclua o caso particular “Não quero enganar a mim mesmo”. Mas por que não enganar? E por que não se deixar enganar? – Note-se que as razões para o primeiro caso se acham numa esfera inteiramente diversa das do segundo: a pessoa não quer se deixar enganar supondo que é prejudicial, perigoso, funesto deixar-se enganar – neste sentido a ciência seria uma prolongada esperteza, uma precaução, uma utilidade, à qual poderia, com justiça, objetar: Como? Não querer deixar-se enganar é de fato menos prejudicial, perigoso, funesto? Que sabem vocês de antemão sobre o caráter da existência, para poder decidir se a vantagem maior está do lado de quem desconfia ou de quem confia incondicionalmente? E se as duas coisas forem necessárias, muita confiança e muita desconfiança: de onde poderá a ciência retirar a sua crença incondicional, a convicção na qual repousa, de que a verdade é mais importante que qualquer outra coisa, também que qualquer convicção? Justamente esta convicção não poderia surgir, se a verdade e a inverdade continuamente se mostrassem úteis: como é o caso. Portanto – a crença na ciência, que inegavelmente existe, não pode ter se originado de semelhante cálculo de utilidade, mas sim apesar de continuamente lhe ser demonstrado o caráter inútil e perigoso da “vontade de verdade”, da “verdade a todo custo”. “A todo custo”: oh, nós compreendemos isso muito bem, depois que ofertamos e abatemos uma crença após a outra nesse altar! – Por conseguinte, “vontade de verdade” não significa “Não quero me deixar enganar”, mas – não há alternativa – “Não quero enganar, nem sequer a mim mesmo”: – e com isso estamos no terreno da moral. Pois perguntemo-nos cuidadosamente: “Por que você não quer enganar?”, sobretudo quando parecesse – e parece! – que a vida é composta de aparência, quero dizer, de erro, embuste, simulação, cegamento, autocegamento, e quando a forma grande da vida, por outro lado, sempre se mostrou realmente do lado dos mais inescrupulosos polýtropoi [homens de muitos expedientes]. Um tal desígnio talvez fosse, interpretando-o de modo gentil, um quixotismo, um ligeiro e exaltado desvario; mas também poderia ser algo pior, isto é, um princípio destruidor, inimigo da vida... “Vontade de verdade” – poderia ser uma oculta vontade de morte. – Assim, a questão: “Por que ciência?”, leva de volta ao problema moral: para que moral, quando vida, natureza e história são ‘imorais’? Não há dúvida, o homem veraz, no ousado e derradeiro sentido que a fé na ciência pressupõe, afirma um outro mundo que não o da vida, da natureza e da história; e, na medida em que afirma esse “outro mundo” – não precisa então negar a sua contrapartida, este mundo, nosso mundo?... Mas já terão compreendido onde quero chegar, isto é, que a nossa fé na ciência repousa ainda numa crença metafísica – que também nós, que hoje buscamos o conhecimento, nós, ateus e antimetafísicos,ainda tiramos nossa flama daquele fogo que uma fé milenar acendeu, aquela crença cristã, que era também de Platão, de que Deus é a verdade, de que a verdade é divina... Mas como, se precisamente isto se torna cada vez menos digno de crédito, se nada mais se revela divino, com a possível exceção do erro, da cegueira, da mentira – se o próprio Deus se revela como a nossa mais longa mentira?