quinta-feira, 28 de abril de 2011

Uma Criatura

Sei de uma criatura antiga e formidável,
que a si mesma devora os membros e as entranhas,
com a sofreguidão da fome insaciável.

Habita juntamente os vales e as montanhas;
e no mar, que se rasga, à maneira do abismo,
espreguiça-se toda em convulsões estranhas.

Traz impresso na fronte o obscuro despotismo.
Cada olhar que despede, acerbo e mavioso,
parece uma expansão de amor e de egoísmo.

Friamente contempla o desespero e o gozo,
gosta do colibri, como gosta do verme,
e cinge ao coração o belo e o monstruoso.

Para ela o chacal é, como a rola, inerme;
e caminha na terra imperturbável, como
pelo vasto areal um vasto paquiderme.

Na árvore que rebenta o seu primeiro gomo
vem a folha, que lento e lento se desdobra,
depois a flor, depois o suspirado pomo.

Pois essa criatura está em toda a obra:
cresta o seio da flor e corrompe-lhe o fruto;
e é nesse destruir que as suas forças dobra.

Ama de igual amor o poluto e o impoluto;
começa e recomeça uma perpétua lida,
e sorrindo obedece ao divino estatuto.
Tu dirás que é a Morte; eu direi que é a Vida.

Machado de Assis

domingo, 10 de abril de 2011

Alguns textos sobre a tragédia em Realengo

Sem nenhuma pretensão de esgotar o assunto, seguem alguns textos para auxiliar na tentativa de compreender o que está envolvido nos acontecimentos da semana passada. Os textos estão organizados por ordem cronológica de publicação.

***
A matança na escola
Chico Alencar, 07/04/11

http://www.chicoalencar.com.br/_portal/noticias_do.php?codigo=477

“Um grito ouviu-se em Ramá, de pranto sentido e lamentação: é Raquel que chora seus filhos, e não quer ser consolada, porque eles não existem mais” (Mt, 2, 18)

A dor indizível e inconsolável das famílias que perderam suas crianças, até há pouco alegres alunos da Escola Municipal Tasso da Silveira, em Realengo, no Rio, exige de nós consternada solidariedade. Ter filhos, netos, irmãos, primos ceifados no alvorecer da vida é a pior tragédia que pode acontecer, e só o conforto humano e alguma fé dará forças para seguir sobrevivendo. Perdê-los no espaço sagrado de uma sala de aula, no início da manhã ensolarada, é mais absurdo ainda.

Mas o acontecimento terrível também impõe profunda reflexão. Uma tragédia como esta não se insere no painel tristemente costumeiro da criminalidade, mas no da violência social insana. É difícil reconhecer que os gatilhos exterminadores também foram, de maneira indireta e invisível, apertados por todos os que temos responsabilidade pública. Mas a matança perpetrada por um indivíduo mentalmente degradado tem propulsores sociais que nos dizem respeito.

O assassino estava com dois revólveres e fartamente municiado porque é frouxo o controle da circulação de armas e munições em nosso país. O armamentismo ilegal é objeto de crescente tráfico, e favorecido também pela cultura importada do ‘cada indivíduo uma arma’;

O criminoso imbuiu-se de uma ‘missão de terror’ porque os meios de comunicação de massa e de ‘entretenimento’ disseminam serial killers, vídeo-games, filmes e seriados propagadores da violência, da eliminação dos adversários como valor maior, do espetáculo da destruição;

O demente, no seu isolamento, em sociedade sem política pública preventiva de saúde mental, cristalizou comportamento mórbido talvez também estimulado por fanatismos e pseudo religiosidade sectária;

O matador encontrou facilidades no seu trajeto de morte porque nossas precarizadas escolas públicas já não têm quantitativo de servidores, dentro delas e no seu entorno, que possa contribuir para maior segurança do cotidiano pedagógico.

O homicida, já condenado definitivamente, foi produzido, de alguma maneira, também por nossa omissão, por nossa indiferença, por nossa demissão cidadã. Talvez por nossa adesão ao mundo torpe da competição desvairada, da eliminação do outro, do desprezo pela dignidade da vida humana. Ambiente civilizatório perverso que muito(a)s educadore(a)s – tantas vezes vítimas dele - lutam por transformar, para que nossas crianças tenham possibilidade de futuro.

***
O terrorismo de Columbine
Mauro Santayana, 08/04/11

Artigo publicado no Jornal do Brasil [http://www.jb.com.br/jb-premium/noticias/2011/04/08/mauro-santayana-coisas-da-politica-19/]
Disponibilizado na íntegra em:
http://www.vermelho.org.br/noticia.php?id_secao=10&id_noticia=151513&sms_ss=facebook&at_xt=4d9f7435190de7ee,0

É difícil separar a emoção da razão, quando escrevemos sobre tragédias como a de ontem. A morte de crianças nos toca fundo: pensamos em nossos próprios filhos, em nossos próprios netos. Por mais que deles cuidemos, são indefesos em um mundo a cada dia mais inóspito.

Crianças e professores são agredidos pelos próprios colegas nas escolas. Traficantes de drogas e aliciadores esperam às suas portas a fim de perverter os adolescentes. Em 1955, baseado em livro de Evan Hunter, Richard Brooks dirigiu um filme forte sobre a brutalidade nas escolas norte-americanas, Blackboard Jungle, exibido no Brasil com o título de Sementes da Violência.

É difícil entender como um rapaz de 24 anos se arma e volta à escola onde estudara, a fim de atirar contra adolescentes. No calor dos fatos, com a irresponsabilidade comum a alguns meios de comunicação, associaram o crime ao bode expiatório de nosso tempo, o “terrorismo muçulmano”. No interesse dessa ilação, chegaram a anunciar que isso estava explícito na carta que ele deixou. Ela, no entanto, revela loucura associada não ao islamismo, mas, sim, às seitas pentecostais, de origem norte-americana, com sua visão obscurantista da fé. São seitas que alimentaram atos de loucura como o de Jim Jones, ao levar 900 de seus seguidores, da People's Temple, ao suicídio, na Guiana, em 18 de novembro de 1978. É o que hoje fazem pastores da Flórida, ao queimar um exemplar do livro sagrado dos muçulmanos – e provocar a reação irada de fiéis no Iraque e no Afeganistão. Segundo revelou sua irmã, a mãe adotiva de Wellington, cuja morte o transtornou, pertencia à seita das Testemunhas de Jeová, preocupada com a pureza do corpo, que o assassino menciona em sua carta. A referência à volta de Jesus e ao dogma da Ressurreição dos justos, não deixa dúvida. Ele nada tinha a ver com o Islã, apesar de suas recomendações lembrarem ritos mortuários comuns às religiões monoteistas.

A carta revela um jovem perturbado pela idéia de pureza. Aos 24 anos, o assassino diz que seu corpo “virgem” não pode ser tocado pelos impuros. Ao mesmo tempo, presumindo-se herdeiro da casa que ocupava em Sepetiba, deixa-a, em legado, para instituições que cuidem de animais abandonados. Os cães, que são a maioria dos bichos de rua no Brasil, são, para os muçulmanos, animais amaldiçoados.

É preciso rechaçar, de imediato, qualquer insinuação de fundamentalismo islamita ao ato de insanidade do rapaz. O pior é que homens públicos eminentes endossaram essa insensatez. O terrorismo de Wellington é o dos atos, já rotineiros, de assassinatos em massa nas escolas norte-americanas, a partir do episódio de Columbine, em 20 de abril de 1999. Desde que os meios de comunicação e do entretenimento transformaram o homem nesse ser unidimensional, conforme Marcuse, o modelo de vida, que o cinema, as histórias em quadrinhos, a televisão e, agora, a internet, nos trazem, é o da pujante, bem armada e soberba civilização norte-americana. Ela nos prometia a realização do sonho da prosperidade, da saúde, da segurança, do conforto e da alegria, da virilidade e da beleza. Mas essa civilização é apenas pesadelo, contrato faustiano com o diabo, sócio emboscado da morte. O diabo começou a cobrar seu preço, ao levar essa civilização à loucura, no Vietnã; nas muitas intervenções armadas em terra alheia; em Oklahoma, em Columbine, em Waco, e nos demais assassinatos coletivos dos últimos anos.

Limpemos as nossas lágrimas, e reflitamos se vale a pena insistir nessa forma de vida. Se vale a pena continuar sepultando crianças, e com elas, os sentimentos de solidariedade, de humanismo, de civilidade e de justiça. As crianças que morreram ontem, ao proteger as mais fracas com seus corpos, nos disseram o que temos a fazer, para que a vida volte a ter sentido.

***
O mal que não se explica
Danielle Brasiliense, 08/04/11

http://oglobo.globo.com/opiniao/mat/2011/04/08/o-mal-que-nao-se-explica-924194473.asp

As repercussões midiáticas sobre a chacina provocada pelo jovem Wellington Menezes na escola municipal de Realengo despertam mais uma vez na sociedade a pergunta: por que este rapaz cometeu este ato tão violento?

Desperta? Talvez em algumas pessoas. O medo da não resposta a esta pergunta faz a maioria ignorar tal questão. Frente ao desespero e daquilo que foge totalmente dos ideais de controle e ordem, justifica-se o horror pelo estado único e delineado da monstruosidade. Não que não seja monstruoso e assustador alguém entrar armado em uma escola e atirar aleatoriamente em dezenas de crianças. Mas, diante do medo, se aponta o dedo para a resposta mais pronta possível: Wellington era um louco, psicopata.

Enquadrado nesta característica, a vida do rapaz pode ser facilmente mapeada e a justificativa da sua loucura apazigua o desespero social. Apazigua? De certa forma, pois ter alguma resposta, mesmo com uma tristeza gigantesca, ajuda a sociedade a encaixar em um determinado lugar visível e concreto o autor desta barbárie. Só que, mesmo com o mapeamento da monstruosidade alheia, o pavor da sua invisibilidade continua a plainar no imaginário.

O que acontece? Cresce a indústria do enquadramento de tipos de sujeitos com possível desequilíbrio psicológico. Criam-se mais fórmulas para detectar o assassino sob a ideia de que ele é um outro diferente de nós. E aí, profissionais publicam seus livros com receitas prontas, sem fundamento algum. Traçam riscos de agressões inusitadas com explicações na falha da educação familiar-infantil e do comportamento da própria criança em não respeitar seus pais e brigar com irmãos. Isso quando não se fala também dos problemas fisiológicos, como má formação do cérebro.

Não há mais vergonha em se fazer, hoje, discursos vazios, ignorantes e até lombrosianos sobre o mapeamento do mal, desde que estes discursos justifiquem o acontecimento trágico inexplicável.

O enquadramento do mal vira uma obsessão, visto que, queremos o tempo todo estar protegidos dele. Tememos que o mal inunde o espaço da ordem social. Como demonstra a antropóloga Mary Douglas, é possível criar uma nova ordem em que a anomalia possa ser absorvida pela sociedade, mas existe uma questão de poder cultural que vem da autoridade da fala pública sobre a importância de manter a ordem social, que nos impede de pensar sobre essas "impurezas" para além do que já foi programado pelo senso comum. Isso fica claro no discurso de extermínio do agressor, e exaltação ao heroísmo, por exemplo, que faz o governador do Rio, Sérgio Cabral, ao chamar Wellington de animal e parabenizar, ao mesmo tempo, o policial que atirou no rapaz.

O mal que não se explica, que nos parece gratuito, tem base no vazio que marca vidas como a de Wellington. O psiquiatra e pesquisador Joel Birman conta em seu livro "Cadernos sobre o Mal" que a crueldade está ligada ao deserto afetivo e à ausência absoluta de reconhecimento dessas pessoas. É como se no mundo nada mais fizesse sentido para Wellington. Na perda de sentido, de significações possíveis, o indivíduo perde os limites e não reconhece mais as margens que o fazem viver em sociedade. Isso se chama "morte do social", na qual a parte obscura dos sujeitos são os seus próprios vazios, suas não-significações.

No ano de 2007, um jovem sul-coreano chamado Cho-Seng-Hui dizia ser discriminado por seus colegas numa universidade nos Estados Unidos, onde estudava. Cho fez diversos vídeos ameaçadores com armas e contando toda a humilhação pela qual sofria na pele de um looser estrangeiro. Até que um dia chega a sua vingança. Ele envia os vídeos para a NBC e vai para a faculdade armado, onde provoca uma chacina de estudantes. Entendemos que um criminoso como Cho se comportou dessa forma por perder o sentido de conviver em sociedade, não apenas por ser um imigrante numa escola americana, mas também por ser estrangeiro no sentido de estar fora do contexto e ser negado a participar do grupo de universitários por ser diferente.

Mas a moda é falar em bullying e dizer para as crianças não discriminarem seus coleguinhas. Em momento algum se repara que poderia haver tanto em Cho como em Wellington uma falta de amor do outro e, então, o que eles fazem é clamar por esse amor da forma mais brutal e absurda possível, pois o sentido desse amor para eles havia se perdido. Nesse caso, é como esses meninos gritassem para o mundo: estou aqui, me amem. Esse é o pedido da compaixão.

O desvio só se aproxima do amor pela compaixão, mas ela só se concretiza em casos de desvios justificados, o que não foi a realidade de Wellington ou de Cho-Seng-Hui. O que nunca vai se deixar de perguntar é: por que essas pessoas fizeram isso? Então, sem uma resposta, sem justificativas que faça a sociedade compreender seu ato, não há amor e muito menos compaixão.

E então, percebemos que tragédia é falta de sentido. E é esta falta de sentido que abala as estruturas sociais. Porque não há justificativas ou verdades possíveis que conseguirão mapear uma tragédia, a não ser a própria ideia de tragédia.

Mesmo que as armas discursivas do senso comum fossem descartadas - o que é impossível se tratando de uma sociedade que busca se organizar pela ordem moral - o mal que embala esses crimes continuaria sem sentido, pois se trata do trágico.

Como afirma Raymond Williams em seu livro "Tragédia Moderna", o mal absoluto que tem sido recorrente é uma autocegueira de uma cultura que não tem coragem de investigar a sua própria natureza e cria não só os atores monstruosos, mas faz o expectador arrancar seus próprios olhos com absurdos sensacionalistas.

Não se trata de julgar ou denominar a monstruosidade, essas são histórias trágicas. Na tragédia não cabe juízo de valor ou amor. Não há perdão, redenção ou explicação possível, ainda que o sujeito fure seus próprios olhos e que fique cego. Os crimes de um mal que não se explica são a pura tragédia.

Danielle Brasiliense é professora do curso de Comunicação da UFF e doutora em Comunicação e Cultura pela ECO/UFRJ.

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O horror da diferença
Cacá Diegues, 09/04/2011

O Globo

Como ele está morto e nunca em vida conversou com alguém sobre o assunto, jamais saberemos os motivos e as circunstâncias psíquicas que fizeram com que o rapaz entrasse na escola de Realengo e praticasse aquele massacre de crianças. Todos temos o direito de fazer suposições, mas jamais conheceremos a verdade, é inútil insistir.

Talvez nos reste apenas tirar das circunstâncias da tragédia algum ensinamento, seguindo umas poucas pistas a nosso dispor. A mais importante delas está certamente na carta deixada pelo assassino, um pouco subestimada pelo que andei lendo nos jornais.

Ali está, antes de tudo (ou “primeiramente”, como o autor a inicia), uma ostensiva divisão do mundo entre os “puros” e os “impuros”, não podendo estes nem ao menos tocar em seu corpo. Mais do que fazendo uma declaração religiosa fundamentalista, Wellington está assim se referindo à incompatibilidade entre ele e os outros, sendo estes os que não merecem viver no mesmo mundo que ele.

Talvez estivesse até dividido entre esse “eu” e “o outro”, sendo ele mesmo as duas coisas. Wellington atirou de preferência em meninas, como se estivesse eliminando preferencialmente o desejo que o tornava “impuro”. Ou seja, que o tornava “o outro”. Mas isso, mais uma vez, é apenas uma suposição.

Como também poderia estar se vingando do que outras crianças podem ter feito com ele no passado, nas mesmas salas de aula em que perseguiu suas vítimas. Alguns relatos dizem que Wellington teria sido alvo de bullying (será que o verbo “bolinar” é um anglicismo decorrente de “bullying” ou os dois vocábulos têm igual raiz latina?), quando estudou naquela mesma escola dos 11 aos 14 anos de idade e era conhecido como Sherman (referência ao nerd de “American Pie”) ou Suingue (por mancar de uma perna).

O que é evidente, a partir das poucas pistas deixadas, é que a tragédia na escola de Realengo está repleta, por todos os lados, de graves e clássicos sintomas de intolerância, uma incapacidade de suportar a diferença, um horror dela que nos impede de viver em paz com o outro.

Nesta mesma semana em que Wellington invadiu a escola atirando em crianças, uma menina chamada Adriele, de 16 anos, foi assassinada no interior de Mato Grosso do Sul por dois rapazes que não se conformavam com o romance dela com a irmã deles. Na semana anterior, Michael, da equipe do Vôlei Futuro, era objeto de brutal manifestação coletiva de homofobia, num ginásio de Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte, por ter-se declarado homossexual. Uma tradição de nosso esporte: há cerca de 10 anos, o jogador Lilico já tinha sido excluído da seleção brasileira de vôlei pela mesma razão.

Por esses mesmos dias, o deputado Jair Bolsonaro falava na televisão da “promiscuidade” que não permitia a seus filhos, a de se relacionar com uma mulher negra como Preta Gil. Assim como um pastor evangélico afirmava, em sua pregação religiosa, que os africanos eram fatalmente herdeiros de maldição lançada por Noé, em nome de Deus, logo depois do dilúvio.

Um pouco mais longe de nós, outro religioso, desta vez na Flórida, queimava em público um exemplar do Alcorão, o livro sagrado dos islamistas. O que provocou, em represália, o assassinato de dezenas de pessoas no Afeganistão, vítimas de homens-bomba.

Se o culpado for sempre o outro, se o mundo estiver dividido sempre entre os puros e os impuros, não evitaremos nunca novos Wellington, nem que toda a polícia do país passe a trabalhar exclusivamente na porta de nossas escolas. A resistência à diferença, o horror a ela, sempre foi causa ou pretexto de todos os genocídios na história da humanidade.

Às vezes, ela se disfarça sofisticadamente em ideologia ou visão de mundo, com teorias cheias de argumentos. Como no nazi-fascismo de Hitler, Mussolini, Pinochet e tantos outros; ou no comunismo de Stalin, Mao, Pol-Pot e tantos outros. Mas, no fundo, todas essas formas de autoritarismo que encharcaram o século XX de sangue partiram sempre da ideia de rejeição da diferença, por medo ou ignorância, por má ciência ou simples superstição.

Um certo cinema, sobretudo o norteamericano de ação, nos encheu e ainda nos enche a cabeça de estímulos a esse combate à diferença. As batalhas intergaláticas de humanos decentes contra alienígenas do mal apenas substituem a incompatibilidade clássica entre o branco civilizador e o indígena selvagem do Velho Oeste, sucedendo aos épicos de guerra contra os insensíveis amarelos do Sudeste da Ásia e os pérfidos árabes do Oriente Médio.

Nesse sentido, um filme como “E.T.”, de 1982, fez mais pela democracia americana do que muito discurso de liberais locais. No filme de Steven Spielberg, a amizade entre a menina interpretada por Drew Barrymore e o extraterrestre monstruoso, perseguidos pelas máscaras e tubos higienicamente brancos dos eugenistas comandados por Pete Coyote, era uma perfeita metáfora do que poderia ser o mundo sem o medo do outro.

Ninguém nasce racista ou homofóbico, ninguém nasce com preconceito algum. A educação que recebemos ao longo de nossos primeiros anos de vida é que nos torna assim ou assado. E isso é portanto uma responsabilidade de todos, da sociedade onde vivemos e no seio da qual seremos preparados para a vida.

Cacá Diegues é cineasta.

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O massacre e a filosofia
Renato Janine Ribeiro, 10/04/11

O Estado de São Paulo
http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20110410/not_imp704220,0.php

O massacre do Realengo deixa-nos, todos, estupefatos. Por que ele aconteceu? A filosofia tem algumas coisas, até conflitantes entre si, a dizer a respeito.

A primeira reação, a mais popular, consiste em achar que foi coisa do Mal - não necessariamente do diabo, mas de algo mau que haja no mundo. No pensamento mais sofisticado essa visão é minoritária, mas existe. Pois é difícil negar a presença de algo mau na vida. Contudo a principal tendência hoje, na filosofia como nos saberes que lidam com a sociedade ou a psique, é considerar que o mau é produzido, é resultado. Vejam o que se conta do assassino: uma pessoa com sérios problemas psíquicos, talvez de origem neurológica, que se agravaram pelas condições em que vivia e por, aparentemente, não ter sido tratada. Seus atos são maus, mas com adequado tratamento talvez ele pudesse ter-se socializado.

O mal não seria algo originário, mas efeito de condições anteriores. Há uma vasta gama de possíveis causas para o crime. Mas não interessa aqui qual explicação se dê. O que importa é que se deem explicações, talvez algumas delas genéticas, mas que terão sido ativadas por razões de convívio (ou sua falta) e por carência de tratamento especializado. Ou seja, o mal é produto de algo que, em si, não é mal. Não haveria "o Mal", menos ainda o demônio. Há problemas de ordem humana e que o homem, isto é, a sociedade, pode resolver.

Essa visão hoje predomina, nas ciências como na imprensa. A mídia procura especialistas que expliquem. Mais que isso, explicando o horrível, espera-se que ele não seja replicado. Como consegui-lo? Uns falam em detectores de metais e em guardas nas escolas, o que é pouco viável. Eu pensaria em mais atendimento social a pessoas em perigo, como era, até o crime, o futuro assassino. Choquei-me ao ver, 12 horas depois da chacina, a escola cheia de policiais, a essa altura desnecessários. O Realengo precisava, então, era de centenas de assistentes sociais, de psicólogos, de gente que pudesse ajudar as famílias e suas crianças a lidar com o trauma, que não afetou somente os parentes dos mortos, mas a comunidade inteira - e o Brasil também, porque nunca imaginamos nossas crianças como alvos de ataque tão perverso.

Essa visão tem, ainda que poucos o saibam, remota origem platônica. Platão entendia que só se faz o mal por se ignorar o Bem. A visão do Bem, o seu conhecimento, é tão forte que torna impossível praticar o mal. Ou seja, voltando a nossos estudiosos da sociedade e da psique, e a nossos proponentes de políticas públicas, todos poderão conviver razoavelmente se as condições que deflagram a agressão forem devidamente tratadas. Mas isso não é fácil. Embora saia mais caro construir cadeias e contratar policiais do que erguer escolas e apelar a especialistas no atendimento humano, a tendência é preferir reagir ao choque a prevenir males. Até porque, quando males ocorrem, são visíveis; quando são prevenidos, nunca se sabe deles. A prevenção do crime por suas causas não é notícia.

Vamos a uma terceira visão filosófica dessa chacina. Agora, o horrível é a impiedade. Como pode alguém massacrar inocentes? Ora, há um grande exemplo histórico nessa direção, que foi o nazismo. Muitos indagaram como a Alemanha, país tão civilizado, fora capaz de matar 6 milhões de judeus, bem como ciganos, em menor número, e eslavos, mais numerosos. Há explicações: a humilhação do Tratado de Versalhes, imposto aos alemães (em 1919, após a 1.ª Guerra Mundial), um antissemitismo presente em várias camadas da população, o autoritarismo prussiano. Mas não bastam. Outras culturas tiveram elementos comparáveis, separados ou reunidos, e nem por isso realizaram holocaustos. Daí que vários estudiosos digam que, em última análise, a análise não consegue explicar o horror. O que se poderia dizer é que pouco resta a dizer, sobre o Holocausto. Os testemunhos são mais poderosos do que as explicações. As causas e razões apontadas ficam muito aquém do sofrimento gerado. Daí que se possa e se deva contar o que aconteceu, mas sem jamais entender como tanto mal pôde ser feito pelo homem - ou tolerado por Deus, se Ele existe. Se o horror é inexplicável, que seja, então, narrado: que, pelo menos, não se torne inenarrável. E sabemos que contar o horror pode aumentá-lo, mas também pode aliviá-lo.

O curioso é que a piedade é um sentimento relativamente recente na vida social. Seu grande defensor é Jean-Jacques Rousseau, que, no século 18, afirmou que o sentimento mais básico no homem é a piedade, a comiseração, a capacidade de sofrer junto ("com+paixão") com qualquer vivente que também sofra. Rousseau talvez pensasse que descrevia o homem como ele é, e nisso pode ter errado. Por milênios, um dos espetáculos mais prestigiados - pelos pobres e pela elite - era ver a lenta agonia dos condenados, em público. Mas depois de Rousseau isso muda. Basta notar que a execução deixa de ser lenta para ser rápida, sai da praça pública para o interior das prisões e, finalmente, é suprimida em quase todos os países do mundo.

No entanto, quase 200 anos depois de Rousseau, a pátria de Goethe e Kant chacinou milhões. Quinze anos atrás, hutus massacraram tutsis. E assassinos chacinam crianças. Falta piedade. O que dizer sobre isso? Temos a explicação pelo Mal, a explicação pelas causas sociais e psíquicas e a impossibilidade de explicar. Pessoalmente, mas sem conseguir descartar a primeira, eu oscilaria entre as duas últimas - apostando em mais políticas públicas, agora focadas talvez em impedir que pessoas que sofrem venham a causar sofrimento inenarrável a outras, e também no respeito de quem sente que, se nesta altura as razões não consolam das perdas, as palavras, pelo menos, podem não ser vãs. Isso se elas ajudarem a recuperar os sobreviventes - do Realengo e, pela televisão interposta, do Brasil inteiro -, que precisam voltar a viver com esperança e sem medo.

Professor titular de ética e filosofia políltica da USP

***
Realengo, alguns dias depois
André Barcinski, 11/04/11

http://andrebarcinski.folha.blog.uol.com.br/

Pensei em postar algo sobre a tragédia de Realengo no próprio dia, mas desisti.

Ainda não havia informações claras sobre o ocorrido.

Além do mais, no calor do momento, o que se poderia fazer a não ser lamentar?

Eu queria ver como nossos políticos iriam reagir ao crime.

Como era de se esperar, eles reagiram como sempre: empurraram os problemas reais para debaixo do tapete.

A primeira reação da Presidente Dilma foi dizer: “Não era característica do país ocorrer esse tipo de crime”.

Entendo que Dilma estava se referindo à forma como o crime ocorreu. De fato, não é comum por aqui.

Mas e a conseqüência do crime, não é comum por aqui?

Doze jovens mortos. Um número assustador. Mais assustador ainda porque foram doze jovens mortos de uma vez, com requintes de sadismo.

Mas sabe quantas pessoas morrem por dia vítimas de armas de fogo no país?

Cento e dez. Quarenta mil por ano.

Ou seja: por dia, acontecem no Brasil nove massacres com igual número de vítimas.

A frase da presidente foi repetida muitas vezes nos últimos dias.

Vi inúmeras pessoas – políticos, especialistas em segurança pública e até cidadãos – comparando o episódio de Realengo ao crime de Columbine. “Isso é coisa dos Estados Unidos”, disse uma testemunha.

Parecia que o Brasil era um oásis de tranqüilidade, e que episódios assim eram exceção.

Como é que a gente quer solucionar um problema se nem nos damos ao trabalho de reconhecê-lo?

O crime de Realengo “parecia coisa de Estados Unidos”?

Na verdade, não. O número de mortos por arma de fogo no Brasil é mais do que o dobro dos Estados Unidos.

Aqui, para cada 100 mil habitantes, 21,72 morrem a tiro. Nos Estados Unidos, são 10,36.

O índice para adolescentes brasileiros é ainda maior: 71 mortes para cada 100 mil habitantes.

No ranking mundial, o Brasil só é mais seguro que a Venezuela, que tem um índice de 30 mortes a cada 100 mil habitantes.
O líder no ranking é o Japão, com 0,06. Ou seja: um brasileiro tem 362 vezes mais chance de ser morto a tiros que um japonês.

A conclusão: crimes assim são, sim, “característica do nosso país”.

Nas entrevistas, várias autoridades e especialistas disseram que a escola precisa identificar com mais rigor os casos de “bullying”, para tentar antecipar eventuais problemas.

Só pode ser brincadeira.

Vivemos num país onde mais de metade dos professores da rede pública de ensino fundamental ganha menos de 800 reais por mês.

Há décadas, nosso sistema educacional é sucateado pelo governo.

A pessoa que escolhe ser professor da rede pública sabe que vai receber um salário de fome.

Conheço uma professora que largou a escola pública para trabalhar de faxineira. Ganhava o dobro.

O Ministério da Educação tem um orçamento anual de 65 bilhões. Mas as obras de infra-estrutura para a Copa do Mundo e as Olimpíadas devem custar o dobro, 135 bilhões de reais.

Faz algum sentido?

Faz sentido destruir o sistema de ensino no país e depois reclamar que a escola precisa identificar possíveis assassinos?

Faz sentido deixar 17 milhões de armas espalhadas pelo país (8,5 milhões delas ilegais) e depois ficar chocado quando um vizinho mata o outro numa discussão?

sábado, 2 de abril de 2011

Slavoj Zizek

‎"Que é filosofia? São questões simples, as questões hermenêuticas: o que significa ser livre? Qual é o horizonte implícito para entender nossas questões e nossas ações? Qual o significado de dizer que isto é verdade? A filosofia é uma disciplina modesta, não se trata de buscar verdades absolutas ou eternas, nem ideais loucos."

tem na tv youtube: http://www.youtube.com/watch?v=eCjnmgF91h0&feature=related