Conceito de ética
ainda é pouco entendido na escola
Jornal do Brasil, 11 de junho de 2000
Entrevista com o professor Yves de La Taille por
Eliane Bardanachvili
- A
escola tem regras demais e princípios de menos: o que isto quer dizer?
- Muitas escolas, hoje, queixam-se de problemas
de disciplina por parte de seus alunos. Se formos verificar, veremos que tais
escolas têm, em geral, um regimento com inúmeras regras. Ficam misturadas e
ganham o mesmo peso regras convencionais, como o uso do uniforme, e princípios
morais, como a proibição do uso da violência, num emaranhado, cujo real sentido
não é explicitado para os alunos e professores. A cobrança de obediência
passiva a todas as regras acaba por ter efeito oposto. Se, em vez de arrolar regras,
a escola deixasse claros os princípios éticos que norteiam o convívio entre
professores, alunos e funcionários, ela seria mais transparente, e, logo, mais
ética, e conseguiria relações sociais mais ricas e pacíficas. Um princípio como
o do respeito mútuo, por exemplo, é abrangente e permite inspirar um grande
número de regras de conduta. Além do mais, a consciência de alguns princípios
permite aos próprios alunos discutir e criar algumas regras que os traduzam. Ao
estabelecerem contratos, as pessoas sentem-se mais responsáveis e ganham
autonomia.
- Como
seriam esses contratos?
- Uma espécie de combinação, em que cada um empenha sua
palavra e, logo, sente-se engajado e responsável pelo seu cumprimento. Os alunos
podem estabelecer entre eles algumas metas a serem atingidas conjuntamente, por
exemplo, cuidar que a escola permaneça limpa. E eles mesmos podem decidir as
sanções cabíveis para quem desrespeitar essa meta. Geralmente, as pessoas têm
maior tendência a obedecer as regras que ajudam a criar do que as que vêm
impostas de fora. Quando a regra vem de fora, ela é ligada a um ele, enquanto, se provém de um contrato,
relaciona-se ao nós. Pode-se ter medo
do castigo do ele, mas tem-se
vergonha do juízo daquele que é considerado um membro do grupo. A vergonha é um
sentimento moral, que ocorre mesmo sem a presença física de outros. O medo do
poder do outro não é um sentimento moral, é apenas temor da retaliação, que
desaparece com a certeza da impunidade.
- Por que o tema 'ética', incluído entre os temas transversais dos Parâmetros Curriculares
Nacionais, tornou-se importante na rotina escolar?
- A vontade de falar de ética vem de um certo cansaço das
pessoas com o individualismo reinante e a falta de projetos e valores
coletivos. Por outro lado, e isto é problemático, esta vontade pode vir de problemas
de disciplina das crianças, em casa, ou na sala de aula. Nem todos os problemas
de disciplina relacionam-se com a ética (há também indisciplinas plenamente
éticas, se motivadas pelo sentimento de impedir uma injustiça). A formação
ética das novas gerações nada tem a ver com torna-las passivamente obedientes. A
ética pede ação, crítica e engajamento.
- Em que a
compreensão do conceito de ética pode contribuir na trajetória do aluno?
- O papel da escola tem se restringido ao de preparação de mão-de-obra.
Assim, traça-se cruelmente uma fronteira entre os alunos com sucesso e os
fracassados, quando é um lugar de convívio social rico, onde se discutem
valores, se experimentam formas solidárias de vida etc. Um aluno que não
consiga, em determinado momento, apresentar resultados escolares dos melhores,
pode estar se destacando de outras formas e, se tiver isso valorizado, pode
voltar a ter confiança em si e, consequentemente, melhorar sua capacidade de
aprender. Uma escola ética acolhe as diferenças, as dificuldades de
aprendizagem. A compreensão do que seja ética, por parte dos professores e dos
alunos, pode influir não somente sobre os comportamentos de cada um, mas sobre
o conjunto das atividades desenvolvidas no contexto escolar.
- Por que o
senhor estabelece diferença entre ética e moral?
- Na base, estas duas palavras são sinônimos: dizem
respeito a como devemos nos conduzir perante os outros e perante nós mesmos,
isto é, referem-se aos valores que elegemos para pautar nossa vida. Mas estabelecer
sentidos diferentes para estes conceitos é muito importante, sobretudo quando
estamos falando de educação. Considero a moral um conjunto de regras precisas e
prescritivas, e ética um conjunto de princípios norteadores da conduta, de onde
são deduzidas as regras. Neste sentido, a ética relaciona-se à autonomia, pois
a pessoa autônoma é capaz de, em variadas situações, para as quais não existem
normas prontas, tomar decisões, criar novas regras. Podemos, também estabelecer
outra diferença entre moral e ética, constatando que a primeira associa-se a
valores e regras que se aplicam no convívio privado, com familiares e amigos, e
a segunda, ao convívio público, com pessoas desconhecidas.
- Pode nos dar um
exemplo?
- Algumas pessoas seguem a moral, mas não a ética. Por
exemplo, sabem que ser honesto é necessário, são honestas com os amigos, mas
não veem grandes problemas em enganar pessoas estranhas ao seu círculo íntimo. Sabem
que não se joga lixo no chão e não o fazem no chão de casa, embora não se
incomodem em fazê-lo na rua. A escola deve se preocupar em formar pessoas que
entendam a aplicação dos valores éticos a todos os seres humanos, e não apenas
a pessoas privilegiadas.
- Como abordar a
ética entre os alunos na escola?
- Basicamente, de três formas complementares. A primeira é
cuidar do convívio escolar, que deve ser um modelo de relações éticas. É muito
difícil formar cidadãos justos se a própria escola é um lugar onde acontecem
injustiças. Os alunos costumam ficar muito atentos a isto e frequentemente
reparam que inúmeras regras se aplicam apenas a eles ficando, por exemplo, os professores
e a direção acima da lei. Isto os leva a não legitimar as regras uma vez que,
na prática, elas não valem para todos. A segunda forma de implementar a
formação ética dos alunos é a escola compreender e leva-los a compreender as
dimensões éticas próprias de cada disciplina. Por exemplo, em Língua
Portuguesa, temos a questão do uso da norma culta: o dizer ‘nós vai’, ao invés
de ‘nós vamos’ transcende a questão gramatical, pois valores sociais estão em
jogo. Um menino pobre que comece a empregar o ‘nós vamos’ em sua comunidade
pode ser rejeitado por ela, ser considerado metido. Isso tem que ser levado em
conta pela escola.
- E em outras
disciplinas, como isso se dá?
- Em nossa cultura, costuma-se considerar um aluno que vai
mal em Geografia ou História apenas como preguiçoso e o que vai mal em
Matemática como pouco inteligente. Por quê? Este diagnóstico errado mexe com a
auto-estima. O professor de Matemática deve cuidar para que esta associação não
seja feita, nem por ele, nem pelos alunos. Trata-se de uma questão com
implicações éticas óbvias. Finalmente, a terceira forma de se abordar a ética
na escola refere-se ao que eu chamaria de instrumentalização: não basta querer
ser ético, é preciso saber como ser ético, ter meios para isto. Penso que cada
escola deveria, por exemplo, dar aulas de primeiros socorros. Há pesquisas que
mostram que pessoas que sabem objetivamente como ajudar os outros costumam ter
condutas mais solidárias.
- Neste contexto,
qual a importância de se estimular a criação de grêmios estudantis nas escolas?
- Os grêmios representam, em geral, uma iniciativa positiva
por parte dos alunos, que se reúnem, aprendem a cooperar, a discutir temas
diretamente ligados a sua rotina e também temas mais amplos. O cuidado que se
deve tomar é para que os grêmios não se tornem corporativistas, ou seja, cuidem
apenas de problemas estudantis, sem qualquer referência ao bem comum. Este
perigo existe em qualquer tipo de associação de classe e a escola deve
manter-se atenta para afastá-lo.
ESCOLA É LOCAL DE
MUDANÇA – “A escola, em vez de receber criticamente as influências da
sociedade, entrega-se a elas”.
- A crise ética
que vivemos, hoje, pode ser superada com um bom trabalho na escola? Ou a escola
reflete uma sociedade sem ética?
- Não há dúvidas de que a escola, como as demais
instituições sociais, acaba por refletir os valores da sociedade como um todo. Assim,
se, hoje, a escola lida com a violência, por exemplo, não é porque tenha gerado
esta violência, mas porque ela está em todos os lugares, na mídia, no trânsito,
nos assaltos, na política. A escola não está em uma redoma, abrigada das
influências sociais. Mas isto não quer dizer que seja mera vítima, nem quer
dizer que nada possa fazer. Frequentemente, é a escola que, em vez de receber
criticamente as influências da sociedade, entrega-se a elas. Isto se percebe no
discurso empresarial que tem sido assumido por várias escolas particulares: os
alunos viram clientes, o saber vira produto e as relações de autoridade acabam
por inverter-se, passando os alunos a não respeitarem seus professores, porque
são eles, ou melhor, seus pais que “pagam a escola”. O discurso empresarial
pouco se adequa à função da escola e das universidades, mas muitas delas deixam
passivamente que ele penetre nas salas de aula.
- Que poderes tem
a escola para interferir na reversão de determinada realidade?
- Se é verdade que a escola sofre influências, é também
verdade que ela pode influir. Afinal, é nela que as novas gerações recebem o
essencial de sua formação. Não esqueçamos também que, praticamente, toda a
população acaba por ter um vínculo com a escola, alguns porque são alunos,
alguns porque são pais, tios ou avós de alunos, outros porque são professores
ou prestam alguma forma de assessoria. A escola pode e deve exercer alguma
forma de liderança na discussão dos temas sociais.
- As relações
dentro da escola, entre direção e professores, entre professores e alunos,
ainda são permeadas pelo poder. Como mudar este quadro?
- Temos duas formas distintas de relação: autoridade e
autonomia. Por exemplo, o cargo de presidente da República, naturalmente,
confere autoridade a quem o ocupa, mas apenas durante o tempo que o ocupa. Frequentemente,
competência, responsabilidade e autoridade andam juntos. Tomemos o exemplo do
professor: ele ocupa um cargo porque, espera-se, tem a competência para isso, e
este cargo lhe confere responsabilidades. Assim, é normal que ele tenha, de
direito, autoridade em relação a seus alunos. Como as relações de autoridade
implicam pedir aos alunos que cumpram determinadas tarefas, a dimensão do poder
está inevitavelmente presente na escola. Todo o problema reside em estabelecer
os limites desse poder, e é aí que chegamos à autonomia.
- De que forma?
- O professor pensa que o aluno não tem autonomia em
determinadas áreas do saber e que, portanto, cabe a ele, professor, dirigir o
processo de ensino-aprendizagem. Esta avaliação, no entanto, é falha, tornando o
exercício da autoridade um abuso de poder, um ato de autoritarismo. A Psicologia
já demonstrou que os alunos têm mais autonomia intelectual e moral do que antes
se pensava. É um desrespeito monitorar as condutas de alguém, quando este
alguém é perfeitamente capaz de tomar decisões e assumir as responsabilidades
decorrentes.
- E na relação
entre direção e professores?
- A mesma coisa pode ser dita se a direção pensa que deve
decidir e controlar tudo o que o professor faz em sala de aula, ela está não
somente atravancando o processo de ensino/aprendizagem, que requer liberdade,
como desrespeitando e infantilizando o professor. As pessoas agarram-se a
pequenos poderes, não porque pensam que são necessários, mas porque sentem
imenso prazer em exercê-los.
- Governo
federal, educadores, secretários de educação, vêm buscando e defendendo a
autonomia da escola, um quadro que vai contra a cultura antiga de centralização
à qual a equipe escolar está acostumada...
- É verdade. A cultura brasileira, em geral, é autoritária
e paternalista. Desconfia-se a priori de que as pessoas não saberão fazer o que
lhes pedem, ou que serão desonestas. Daí a crença na necessidade de controle
incessante e sufocante. Nas escolas, é a mesma coisa: pensa-se que a
centralização e o controle constante são absolutamente necessários, e isto a
despeito de muitas experiências educacionais bem-sucedidas terem nascido
justamente de iniciativas locais, com grande participação criativa de
professores e alunos. Não se muda uma cultura em poucos anos, mas penso que a
democratização do país ajudará, paulatinamente, a inverter esse processo. Os Parâmetros
Curriculares Nacionais representam bom exemplo de atribuição de autonomia e de
respeito a professores e alunos: estes parâmetros lançam diretrizes gerais e
dizem que a tradução destas deverá ser feita em cada região, em cada
estabelecimento de ensino, em cada sala de aula.
- O senhor tem um
livro publicado que trata de limites e superação de limites. De que forma estas
ideias estão relacionadas ao aluno e à escola?
- Como se sabe, a palavra limite é muito empregada hoje,
mas, infelizmente, apenas no seu sentido restritivo. Resolvi ampliar o sentido
desta metáfora, pensando os limites de três formas diferentes. A primeira é a
clássica: limites a não serem ultrapassados, interdições, portanto. A segunda
trata dos limites a serem ultrapassados, no sentido da auto-superação. Na
terceira, estariam os limites como fronteiras que protegem a privacidade e que,
portanto, as crianças devem construir para se protegerem de invasões alheias em
seu mundo psíquico. Penso que as três dimensões de limite interessam à
educação. O livro contém um alerta: se é verdade que, em parte, a educação tem
falhado no estabelecimento de limites (à violência, por exemplo), é também
verdade que tem deixado de estimular os alunos a ultrapassarem os próprios, no caminho
da auto-superação e desenvolvimento.
- Como ocorre
esse desestímulo?
- Ao invés de levar os alunos até a cultura, a escola
infantiliza a cultura, para que possa ser, sem maiores esforços, assimilada
pelos alunos. O entretenimento ocupa o lugar do esforço, e o prazer imediato
substitui a construção de projetos de vida. Quanto aos limites que protegem a
intimidade, penso que também eles devem ser lembrados numa sociedade tão
invasiva. A escola deve estar atenta pois, não raras vezes, invade a
privacidade dos alunos, fazendo-os passar por inúmeros testes psicológicos e
entrevistas. Se um aluno não quiser escrever uma redação sobre o tema minhas férias, ele tem direito de
recusar esta tarefa. Ninguém pode obriga-lo a falar de sua privacidade. E a
escola abusa deste falar de si como recurso pedagógico.