Nietzsche. Schopenhauer educador, parte 1.
[in: NIETZSCHE, F. Escritos sobre educação. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2003, p. 138-142. Tradução: Noéli Correia de Melo Sobrinho]
Ao ser perguntado que natureza encontrou nos homens em todos os lugares, o viajante que viu muitos países e povos e vários continentes respondeu: eles têm uma propensão à preguiça. Alguns acharão que ele teria respondido com mais justeza e razão: todos são timoratos. Eles se escondem atrás de costumes e opiniões. No fundo, todo homem sabe muito bem que não se vive no mundo senão uma vez, na condição de único, e que nenhum acaso, por mais estranho que seja, combinará pela segunda vez uma multiplicidade tão diversa neste todo único que se é: ele o sabe, mas esconde isso como se tivesse um remorso na consciência – por quê? Por medo do próximo que exige esta convenção e nela se oculta. Mas o que obriga o indivíduo a temer o seu vizinho, a pensar e agir como animal de rebanho e não se alegrar consigo próprio? Em alguns muito raros, talvez o pudor. Mas na maioria dos indivíduos, é a indolência, o comodismo, em suma, esta propensão à preguiça da qual falava o viajante. Ele tem razão: os homens são ainda mais preguiçosos do que timoratos e temem antes de mais nada os aborrecimentos que lhes seriam impostos por uma honestidade e uma nudez absolutas. Somente os artistas detestam este andar negligente, com passos contados, com modos emprestados e opiniões postiças, e revelam o segredo, a má-consciência de cada um, o princípio segundo o qual todo homem é um milagre irrepetível; somente eles se atrevem nos mostrar o homem tal como ele propriamente é e tal como é único e original em cada movimento de seus músculos, e mais ainda, que ele é belo e digno de consideração segundo a estrita coerência da sua unicidade, que ele é novo e incrível como todas as obras da natureza e de maneira nenhuma tedioso. Quando o grande pensador despreza os homens, é a preguiça destes que ele despreza, pois é ela que dá a eles o comportamento indiferente das mercadorias fabricadas em série, indignas de contato e de ensino. O homem que não quer pertencer à massa só precisa deixar de ser indulgente para consigo mesmo; que ele siga a sua consciência que lhe grita: “Sê tu mesmo! Tu não és isto que agora fazes, pensas e desejas”.
Toda alma jovem vive este apelo dia e noite, e estremece; pois ela pressente a medida de felicidade que lhe é destinada de toda a eternidade, quando pensa na sua verdadeira emancipação: felicidade a qual de nenhum modo alcançará de maneira duradoura, enquanto permanecer nas cadeias da opinião corrente e do medo. E como pode ser desesperada e desprovida de sentido a vida sem esta libertação! Não existe na natureza criatura mais sinistra e mais repugnante do que o homem que foi despojado do seu próprio gênio e que se extravia agora a torto e a direito, em todas as direções. Afinal, não se tem mesmo o direito de atacar um tal homem, pois ele existe somente fora do seu eixo, como fantasia frouxa tingida e gasta, como um espectro sarapintado que não pode inspirar medo e menos ainda compaixão. E mesmo que se diga, com razão, do preguiçoso que ele mata o tempo, será preciso também ocupar-se seriamente, de uma vez para sempre, com matar o tempo de uma época que coloca sua salvação nas opiniões recebidas, quer dizer, nos vícios privados; em outras palavras, é preciso apagar este tempo da história da autêntica emancipação da vida. Qual não seria a aversão das gerações futuras, quando tivessem de se ocupar com a herança deste período, em que não são os homens vigorosos que governam, mas os arremedos de homem, os intérpretes da opinião. Esta é a razão por que o nosso século passará talvez, para uma longínqua posteridade, como o momento mais obscuro e desconhecido, como o período mais inumano da história. Quando percorro as novas ruas das nossas cidades, me ponho a pensar que, no espaço de um século, nada restará de pé destas casas horrorosas que se construiu para si a raça dos conformistas da opinião, e quando então as opiniões destes construtores serão destruídas elas também. Que esperança, pelo contrário, deveria animar todos aqueles que não se sentem cidadãos deste tempo, pois se o fossem, contribuiriam para matar sua época e soçobrar com ela – embora quisessem somente despertá-la para a vida, a fim de viver eles próprios nesta mesma vida.
Mas, ainda que o futuro não nos deixasse qualquer esperança, a singularidade da nossa existência neste momento preciso é o que nos encorajaria mais fortemente a viver segundo a nossa própria medida: quero falar sobre este fato inexplicável de vivermos justamente hoje, quando dispomos da extensão infinita do tempo para nascer, quando não possuímos senão o curto lapso de tempo de um hoje e quando é preciso mostrar nele, por que razões e para que fins, aparecemos exatamente agora. Temos de assumir diante de nós mesmos a responsabilidade por nossa existência, por conseguinte, queremos agir como os verdadeiros timoneiros desta vida e não permitir que nossa existência pareça uma contingência privada de pensamento. Esta existência quer que a abordemos com ousadia e também com temeridade, até porque, no melhor ou no pior dos casos, sempre a perderemos. Por que se agarrar a este pedaço de terra, a esta profissão, por que dar ouvidos aos propósitos do vizinho? É igualmente provinciano jurar obediência a concepções que, em centenas de outros lugares, já não obrigam mais. O Ocidente e o Oriente são linhas imaginárias que alguém traça com um giz diante dos nossos olhos, para enganar a nossa pusilanimidade. Vou tentar alcançar a liberdade, diz para si a jovem alma. Não obstante, seria ela disso impedida pelo fato de o acaso querer que duas nações se odeiem e entrem em guerra, ou pelo fato de um mar separar dois continentes, ou pelo fato ainda de se ensinar em torno dela uma religião que já não existia há milhares de anos? Tu não és propriamente nada disso, diz ela para si. Ninguém pode construir no teu lugar a ponte que te seria preciso tu mesmo transpor no fluxo da vida – ninguém, exceto tu. Certamente, existem as veredas e as pontes e os semideuses inumeráveis que se oferecerão para te levar para o outro lado do rio, mas somente na medida em que te vendesses inteiramente: tu te colocarias como penhor e te perderias. Há no mundo um único caminho sobre o qual ninguém, exceto tu, poderia trilhar. Para onde leva ele? Não perguntes nada, deves seguir este caminho. Quem foi então que anunciou este princípio: “Um homem nunca se eleva mais alto senão quando desconhece para onde seu caminho poderia levá-lo?”
Mas como encontrar a nós mesmos? Como o homem pode se conhecer? Trata-se de algo obscuro e velado; e se a lebre tem sete peles, o homem pode bem se despojar setenta vezes das sete peles, mas nem assim poderia dizer: “Ah! Por fim, eis o que tu és verdadeiramente, não há mais o invólucro”. É também uma empresa penosa e perigosa cavar assim em si mesmo e descer à força, pelo caminho mais curto, aos poços do próprio ser. Com que facilidade, então, ele se arrisca a se ferir, tão gravemente que nenhum médico poderia curá-lo. E, além disso, por que seria isto necessário, se tudo carrega consigo o testemunho daquilo que somos, as nossas amizades e os nossos ódios, o nosso olhar e o estreitar da nossa mão, a nossa memória e o nosso esquecimento, os nossos livros e os traços da nossa pena? Mas este é um meio de determinar o interrogatório essencial. Que a jovem alma se volte retrospectivamente para sua vida e faça a seguinte pergunta: “O que tu verdadeiramente amaste até agora, que coisas te atraíram, pelo que tu te sentiste dominado e ao mesmo tempo totalmente cumulado? Faz passar novamente sob teus olhos a série inteira destes objetos venerados, e talvez eles te revelem, por sua natureza e por sua sucessão, uma lei, a lei fundamental do teu verdadeiro eu. Compare estes objetos, observe como eles se completam, crescem, se superam, se transfiguram mutuamente, como formam uma escada graduada através da qual até agora te elevaste até o teu eu. Pois tua essência verdadeira não está oculta no fundo de ti, mas colocada infinitamente acima de ti, ou pelo menos daquilo que tomas comumente como sendo teu eu. Teus verdadeiros educadores, aqueles que te formarão, te revelam o que são verdadeiramente o sentido original e a substância fundamental da tua essência, algo que resiste absolutamente a qualquer educação e a qualquer formação, qualquer coisa em todo caso de difícil acesso, como um feixe compacto e rígido: teus educadores não podem ser outra coisa senão teus libertadores”. E eis aí o segredo de toda formação, ela não procura os membros artificiais, os narizes de cera, os olhos de cristal grosso; muito pelo contrário, o que nos poderia atribuir esses dons seria somente uma imagem degenerada desta formação. Ao contrário, aquela outra educação é somente libertação, extirpação de todas as ervas daninhas, dos dejetos, dos vermes que querem atacar as tenras sementes das plantas, ela é efusão de luz e calor, o murmúrio amistoso da chuva noturna; ela é imitação e adoração da natureza no que esta tem de maternal e misericordioso, ela consuma a natureza quando, conjurando os acessos impiedosos e cruéis, os faz levar a bom termo, quando lança o véu sobre suas intenções de madrasta e as manifestações de sua triste cegueira.
Certamente, existem outros meios de se encontrar a si mesmo, de escapar do aturdimento no qual nos colocamos habitualmente, como envoltos numa nuvem sombria, mas não conheço coisa melhor do que lembrar dos nossos mestres e educadores. É por isso que vou lembrar hoje o nome do único professor, o único mestre de quem eu posso me orgulhar, Arthur Schopenhauer, para só me lembrar de outros mais tarde.
quarta-feira, 28 de setembro de 2011
quinta-feira, 8 de setembro de 2011
conhece-te?
Questão de vestibular da UFMG
Leia estes trechos:
TRECHO 1
a) O Projeto Genoma [...] é a resposta final ao mandamento: Conhece-te a ti mesmo.
W. Gilbert, geneticista, citado por SCHATTUCK, Roger. Conhecimento proibido. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p.173.
b) Se eu tivesse um computador adequado e a seqüência completa do DNA, poderia calcular o organismo de um ser vivo, isto é, sua anatomia, sua fisiologia e seu comportamento.
W. Gilbert, geneticista, citado por JUNGUES, José Roque. Bioética. São Leopoldo: Unisinos, 1999. p. 234. (Texto adaptado)
TRECHO 2
Num certo sentido, é necessário, como disse o oráculo grego, conhecer-se a si mesmo. Essa é a primeira meta do conhecimento. Mas reconhecer que a alma do homem é incognoscível é o objetivo supremo da sabedoria. O mistério final somos nós mesmos. Quando tivermos conseguido pesar o sol na balança e medido os degraus da lua e desenhado o mapa dos sete céus, estrela por estrela, ainda restaremos nós. Quem poderá calcular a órbita da própria alma?
WILDE, Oscar. De profundis.
IDENTIFIQUE e ANALISE as duas posições expressas nesses trechos, com relação à possibilidade de autoconhecimento por parte do ser humano.
***
Não é um bom tema para fazer uma redação?
quarta-feira, 7 de setembro de 2011
Platão e a Alma
Platão: Mito da Alma como uma Parelha Alada.
[Platão. Fedro. Tradução: Carlos Alberto Nunes. Universidade Federal do Pará, 1975]
[Fedro, 245c-250c]
[A Imortalidade da Alma]
A alma é toda imortal, pois o que move a si mesmo é imortal; porém o que movimenta outra coisa ou é movido por outra coisa, deixa de viver quando cessa o movimento. Somente o ser que a si mesmo se movimenta, pelo fato de nunca abandonar-se, é que não pára de mover-se, como é fonte e princípio de movimento para tudo o que recebe movimento do de fora. Só o princípio não é gerado; muito ao revés disso: dele, necessariamente, é que se origina tudo que nasce, ao passo que ele mesmo não provém de nada, porque se se originasse de alguma coisa, não seria princípio. Ora, uma vez que nunca nasceu, terá também de ser indestrutível, pois se o princípio viesse a perecer, nem ele poderia renascer de alguma coisa, nem nada teria nascimento nele, a ser verdade que tudo terá de provir de algum princípio. Surge daí, ser princípio de movimento o que se movimenta a si mesmo; donde se colhe, que ele não pode começar a existir nem vir a destruir-se, sob pena de cair e parar todo o céu e toda a geração, que nunca mais encontrariam outra fonte de vida e de movimento. Demonstrada, assim, a imortalidade do que se movimenta por si mesmo, não terá de que envergonhar-se quem afirmar que nisso consiste a essência e a própria idéia da alma. Todo corpo que recebe de fora o movimento é inanimado, sendo, pelo contrário, animado o que tira de si mesmo, de dentro, o movimento, pois nisso, precisamente, consiste a natureza da alma. Ora, se as coisas se passam, realmente, desse modo, se a alma é o que a si mesmo se movimenta, necessariamente a alma não pode ser gerada e é imortal. A respeito da imortalidade, é quanto basta.
Sobre sua natureza, teremos de dizer o seguinte: o que, realmente, ela seja, é assunto de todo o ponto divino, que exigiria largas explanações; mas, irá bem uma imagem em nosso linguajar humano e de recursos limitados. Deste modo é que devemos expressar-nos: assemelha-se a uma força natural composta de uma parelha de cavalos alados e de seu cocheiro. Os cavalos dos deuses e os respectivos aurigas são bons e de elementos nobres, porém os dos outros seres são compostos. Inicialmente, no nosso caso o cocheiro dirige uma parelha desigual; depois, um dos cavalos da parelha é belo e nobre e oriundo de raça também nobre, enquanto o outro é o contrário disso, tanto em si mesmo como por sua origem. Essa a razão de ser entre nós tarefa dificílima a direção das rédeas. De onde vem ser determinado mortal e imortal o que tem vida, é o que procurarei explicar. Sempre é a alma toda que dirige o que não tem alma, e percorrendo a totalidade do universo, assume formas diferentes, de acordo com os lugares. Quando é perfeita e alada, caminha nas alturas e governa o mundo em universal. Vindo a perder as asas, é arrastada até bater nalguma coisa sólida, onde fixa a moradia e se apossa de um corpo de terra, que pareça mover-se por si mesmo, em virtude da força própria da alma. Essa composição tem o nome de animal, a alma e o corpo ajustados entre si, e é designada como mortal. A imortal não pode ser compreendida racionalmente; porém, dado que não vejamos nem compreendamos cabalmente nenhuma divindade, imaginamo-la como um ser imortal dotado de alma e dotado de corpo, unidos naturalmente por toda a eternidade. Mas, tudo isso será como Deus quiser e permitir que nos expressemos. Vejamos agora a causa de caírem as asas, de virem as almas a perdê-las. Passa-se mais ou menos o seguinte.
A virtude natural da asa consiste em levar o que é pesado para as alturas onde habita a geração dos deuses, sendo ela, de tudo o que se relaciona com o corpo, o que em mais alto grau participa do divino. Ora, o divino é belo, sábio, bom e tudo o mais do mesmo gênero, pois é isso o que alimenta e faz crescer as asas da alma; ao passo que o feio, o mal e tudo o mais que se opõe àquelas qualidades a fazem murchar e perecer. Zeus, o guia supremo, abre a marcha no céu com o seu carro alado, ordenando tudo e de tudo cuidando, seguido por um exército de deuses e demônios, repartidos em onze grupos. Só fica Héstia na morada dos deuses; os demais, que integram o número dos deuses dominadores, seguem à frente do grupo para que foram designados. Infinitos e abençoados são os espetáculos dessas evoluções do interior do céu, executadas pela feliz raça dos deuses, cada um na sua esfera particular e acompanhados dos que querem e podem sempre segui-los, pois a Inveja foi excluída desde logo do coro divino. Sempre que vão banquetear-se nos festins, galgam a escarpa da abóbada celeste; nessas ocasiões as parelhas dos deuses, por serem equilibradas e de fácil direção, sobem depressa, enquanto as outras só o fazem com dificuldade, pois o corcel de raça ordinária, quando não foi devidamente educado pelo auriga, em vista de seu peso puxa o carro para a terra. É a mais árdua provação com que a alma se defronta. As almas denominadas imortais, uma vez alcançado o vértice, passam para o outro lado e se postam, assim, no dorso da abóbada celeste, e, uma vez ali chegadas, a revolução do céu as arrasta no seu curso, contemplando elas as realidades que se encontram para além do céu.
A região supraceleste nunca foi cantada por nenhum poeta cá de baixo, nem nunca poderá ser bastante enaltecida. O que há é o seguinte, pois é preciso coragem para dizer a verdade. A essência que realmente existe e é sem corpo e sem forma, impalpável e só pode ser percebida pelo guia da alma, o intelecto, sobre ser o objeto do verdadeiro conhecimento, tem aqui a sua sede. Ora, o pensamento de Deus, nutrido exclusivamente de inteligência e de conhecimento puro, tal como se dá, aliás, com toda alma que se preocupa com receber o conhecimento que lhe convém, alegra-se quando chega o tempo de voltar a perceber a realidade, e se nutre com delícias da contemplação da verdade, até que o movimento circular a traga de novo para o ponto de partida. No decurso dessa ampla revolução contempla a justiça em si mesma, contempla a temperança, o conhecimento, não o conhecimento passível de crescimento e que difere de acordo com o objeto com que se relaciona e a que em nossa curta existência damos a denominação de seres, mas o conhecimento do que verdadeiramente existe. Depois de haver contemplado as outras realidades verdadeiras e delas se alimentado, mergulha a alma de novo no interior do céu e retorna para sua morada. Lá chegando, o cocheiro leva os cavalos para a manjedoura, lança-lhes Ambrósia e depois dá-lhes a beber néctar.
Assim é a vida dos deuses. Das outras almas, as dos homens, a que melhor se esforça por acompanhar os deuses e com eles parecer-se, eleva a cabeça do cocheiro para o outro lado do céu e se deixa arrastar pelo movimento circular; porém, perturbada pelos cavalos, mal pode contemplar as essências. A segunda melhor, ora se ergue ora se abaixa, mas, sempre atarefada com os cavalos, percebe umas tantas essências e deixa passar outras. As demais almas também desejam ardentemente alcançar a parte superior e se afanam nesse sentido; porém, não sendo suficientemente fortes, caem para a parte inferior da abóbada, amontoam-se, machucam-se, procurando cada uma passar à frente da vizinha. A confusão é enorme; há luta e o suor escorre em bagas e, por falta de perícia dos cocheiros, muitas almas ficam estropiadas e chegam a perder parte das asas. Depois desse trabalho insano, todas voltam sem terem conseguido contemplar a realidade, e, uma vez dali afastadas, alimentam-se apenas com a Opinião.. a razão de tamanho empenho de contemplar a Planície da Verdade, está no fato de nascer justamente naquele prado o alimento adequado para a porção mais nobre da alma e de nutrir-se com isso a natureza das asas que confere à alma mais leveza. A lei de Adrasteia é a seguinte: toda alma que no séqüito de algum deus consegue contemplar algo das verdadeiras realidades, fica livre de padecimentos até à revolução seguinte, e se sempre conseguir isso mesmo, nunca mais virá a sofrer coisa nenhuma. Quando, ao revés disso, por incapacidade de acompanhar os deuses, nada percebe das essências e, pelo efeito de alguma desgraça intercorrente, torna-se pesada, em decorrência mesmo de tal fato perde as asas e cai no chão: há uma lei que a proíbem entrar no corpo de algum animal logo na geração seguinte, como também determina que a que teve visão mais rica penetre no germe de um homem destinado a ser amigo da sabedoria e da beleza ou cultor das Musas e do amor; a alma colocada em segundo lugar dará um rei legítimo, potentado ou guerreiro de prol; a terceira classificada, tornar-se-á político, ecônomo ou comerciante; a quarta, um ginasta amigo dos exercícios físicos ou algum entendido na cura das doenças do corpo; a quinta terá vida de adivinho ou de iniciado nos mistérios; a sexta será poeta ou alguém afeito às artes da imitação; a sétima, artista ou lavrador; a oitava, sofista ou demagogo, e a nona, algum tirano. Em todos esses estados,os que viveram de modo justo alcançam melhor sorte; quem praticou injustiça, destino cem vezes pior.
Cada alma não retorna ao ponto de partida senão depois de decorridos dez mil anos, nem recupera as asas antes desse prazo, com exceção de quem se dedicou sem dolo à filosofia e dos que votaram aos jovens afeição verdadeiramente, filosófica. Nesses casos, no terceiro período de mil anos, se três vezes a fio elas escolherem o mesmo gênero de vida, voltam a adquirir asas e dali se afastam no fim de três mil anos. As demais, escoado o termo da primeira existência, são submetidas a julgamento, depois do qual umas tantas descem para prisões correcionais embaixo da terra, a fim de cumprirem a pena cominada, enquanto outras, aligeiradas pela sentença, são conduzidas para determinado lugar do céu, onde levam uma vida mais digna do que a anteriormente vivida sob a forma humana. Decorridos mil anos, tanto estas como aquelas terão de submeter-se à sorte para escolherem a segunda vida, de acordo com seu próprio alvedrio. Então, uma alma de homem poderá entrar no corpo de algum animal, e o inverso: entrar no homem a alma de animal que já tivesse sido homem, pois jamais adquirirá essa forma a alma que em nenhum tempo alcançou a contemplação da Verdade. Realmente, a condição humana implica a faculdade de compreender o que denominamos idéia, isto é, ser capaz de partir da multiplicidade de sensações para alcançar a unidade mediante a reflexão. É a reminiscência do que nossa alma viu quando andava na companhia da divindade e, desdenhando tudo o a que atribuímos realidade na presente existência, alçava a vista para o verdadeiro ser. Daí, justificar-se só ter asas o pensamento do filósofo, porque este se aplica com todo o empenho, por meio da reminiscência, às coisas que asseguram ao próprio deus a sua divindade. Só atinge a perfeição do indivíduo que sabe valer-se da reminiscência e foi devidamente iniciado mistérios. Indiferente às atividades humanas e ocupado só com as coisas divinas, geralmente passa por louco, já que o vulgo não percebe que ele é inspirado.
A isto tendia todo o discurso relativo à quarta forma de delírio. Quando, à vista da beleza terrena e, despertada a lembrança da verdadeira beleza, a alma readquire asas e, novamente alada, debalde tenta voar, à maneira dos pássaros dirige o olhar para o céu, sem atentar absolutamente nas coisas cá de baixo, do que lhe vem ser acoimada de maníaca. Porém o que eu digo é que essa é a melhor modalidade de possessão, a de mais nobre origem, tanto em quem se manifesta como em quem dele a recebeu. O indivíduo atacado de semelhante delírio, sempre que apaixonado das coisas belas, é denominado amante. Conforme disse há pouco, toda alma de homem já contemplou naturalmente a verdadeira realidade, sem o que não teria nunca adquirido essa forma; porém não o é igualmente para todas, à vista das coisas terrenas, recordar-se das coisas celestes, o que se dá tanto com as que as perceberam de corrida como com as que tiveram a infelicidade de cometer alguma injustiça por influência de más companhias e de esquecer os mistérios sagrados contemplados naquela ocasião. Assim, são bem poucas as que conservam a lembrança do que viram. Sempre que essas poucas percebem alguma imagem das coisas lá do alto, ficam tomadas de entusiasmo e perdem o domínio de si mesmas. Porém não sabem o que se passa com elas, por carecerem de percepção bastante clara, pois em relação à justiça, à temperança e tudo o mais que a alma tem em grande estima, as imagens terrenas são totalmente privadas de brilho; com órgãos turvos e, por isso mesmo, com assaz dificuldade, é que as poucas pessoas que se aproximam das imagens conseguem reconhecer nelas o gênero do modelo original. Porém a Beleza era muito fácil de ver por causa do seu brilho peculiar quando, no séqüito de Zeus, tomando parte no coro dos bem-aventurados e os demais no de outra divindade, gozávamos do espetáculo dessa visão admirável e, iniciados nesse mistério que, com toda a justiça, pode ser denominado sacratíssimo, e que celebrávamos na plenitude da perfeição e livres dos males que nos alcançam no futuro, fomos admitidos a contemplar sob a luz mais pura aparições perfeitas, simples, imutáveis, puros também e libertos deste cárcere de morte que com o nome de corpo carregamos conosco e no qual estamos aprisionados como a ostra em sua casca.
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