quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Platão e a Alma


Platão: Mito da Alma como uma Parelha Alada.
[Platão. Fedro. Tradução: Carlos Alberto Nunes. Universidade Federal do Pará, 1975]

[Fedro, 245c-250c]

[A Imortalidade da Alma]
A alma é toda imortal, pois o que move a si mesmo é imortal; porém o que movimenta outra coisa ou é movido por outra coisa, deixa de viver quando cessa o movimento. Somente o ser que a si mesmo se movimenta, pelo fato de nunca abandonar-se, é que não pára de mover-se, como é fonte e princípio de movimento para tudo o que recebe movimento do de fora. Só o princípio não é gerado; muito ao revés disso: dele, necessariamente, é que se origina tudo que nasce, ao passo que ele mesmo não provém de nada, porque se se originasse de alguma coisa, não seria princípio. Ora, uma vez que nunca nasceu, terá também de ser indestrutível, pois se o princípio viesse a perecer, nem ele poderia renascer de alguma coisa, nem nada teria nascimento nele, a ser verdade que tudo terá de provir de algum princípio. Surge daí, ser princípio de movimento o que se movimenta a si mesmo; donde se colhe, que ele não pode começar a existir nem vir a destruir-se, sob pena de cair e parar todo o céu e toda a geração, que nunca mais encontrariam outra fonte de vida e de movimento. Demonstrada, assim, a imortalidade do que se movimenta por si mesmo, não terá de que envergonhar-se quem afirmar que nisso consiste a essência e a própria idéia da alma. Todo corpo que recebe de fora o movimento é inanimado, sendo, pelo contrário, animado o que tira de si mesmo, de dentro, o movimento, pois nisso, precisamente, consiste a natureza da alma. Ora, se as coisas se passam, realmente, desse modo, se a alma é o que a si mesmo se movimenta, necessariamente a alma não pode ser gerada e é imortal. A respeito da imortalidade, é quanto basta.

Sobre sua natureza, teremos de dizer o seguinte: o que, realmente, ela seja, é assunto de todo o ponto divino, que exigiria largas explanações; mas, irá bem uma imagem em nosso linguajar humano e de recursos limitados. Deste modo é que devemos expressar-nos: assemelha-se a uma força natural composta de uma parelha de cavalos alados e de seu cocheiro. Os cavalos dos deuses e os respectivos aurigas são bons e de elementos nobres, porém os dos outros seres são compostos. Inicialmente, no nosso caso o cocheiro dirige uma parelha desigual; depois, um dos cavalos da parelha é belo e nobre e oriundo de raça também nobre, enquanto o outro é o contrário disso, tanto em si mesmo como por sua origem. Essa a razão de ser entre nós tarefa dificílima a direção das rédeas. De onde vem ser determinado mortal e imortal o que tem vida, é o que procurarei explicar. Sempre é a alma toda que dirige o que não tem alma, e percorrendo a totalidade do universo, assume formas diferentes, de acordo com os lugares. Quando é perfeita e alada, caminha nas alturas e governa o mundo em universal. Vindo a perder as asas, é arrastada até bater nalguma coisa sólida, onde fixa a moradia e se apossa de um corpo de terra, que pareça mover-se por si mesmo, em virtude da força própria da alma. Essa composição tem o nome de animal, a alma e o corpo ajustados entre si, e é designada como mortal. A imortal não pode ser compreendida racionalmente; porém, dado que não vejamos nem compreendamos cabalmente nenhuma divindade, imaginamo-la como um ser imortal dotado de alma e dotado de corpo, unidos naturalmente por toda a eternidade. Mas, tudo isso será como Deus quiser e permitir que nos expressemos. Vejamos agora a causa de caírem as asas, de virem as almas a perdê-las. Passa-se mais ou menos o seguinte.

A virtude natural da asa consiste em levar o que é pesado para as alturas onde habita a geração dos deuses, sendo ela, de tudo o que se relaciona com o corpo, o que em mais alto grau participa do divino. Ora, o divino é belo, sábio, bom e tudo o mais do mesmo gênero, pois é isso o que alimenta e faz crescer as asas da alma; ao passo que o feio, o mal e tudo o mais que se opõe àquelas qualidades a fazem murchar e perecer. Zeus, o guia supremo, abre a marcha no céu com o seu carro alado, ordenando tudo e de tudo cuidando, seguido por um exército de deuses e demônios, repartidos em onze grupos. Só fica Héstia na morada dos deuses; os demais, que integram o número dos deuses dominadores, seguem à frente do grupo para que foram designados. Infinitos e abençoados são os espetáculos dessas evoluções do interior do céu, executadas pela feliz raça dos deuses, cada um na sua esfera particular e acompanhados dos que querem e podem sempre segui-los, pois a Inveja foi excluída desde logo do coro divino. Sempre que vão banquetear-se nos festins, galgam a escarpa da abóbada celeste; nessas ocasiões as parelhas dos deuses, por serem equilibradas e de fácil direção, sobem depressa, enquanto as outras só o fazem com dificuldade, pois o corcel de raça ordinária, quando não foi devidamente educado pelo auriga, em vista de seu peso puxa o carro para a terra. É a mais árdua provação com que a alma se defronta. As almas denominadas imortais, uma vez alcançado o vértice, passam para o outro lado e se postam, assim, no dorso da abóbada celeste, e, uma vez ali chegadas, a revolução do céu as arrasta no seu curso, contemplando elas as realidades que se encontram para além do céu.

A região supraceleste nunca foi cantada por nenhum poeta cá de baixo, nem nunca poderá ser bastante enaltecida. O que há é o seguinte, pois é preciso coragem para dizer a verdade. A essência que realmente existe e é sem corpo e sem forma, impalpável e só pode ser percebida pelo guia da alma, o intelecto, sobre ser o objeto do verdadeiro conhecimento, tem aqui a sua sede. Ora, o pensamento de Deus, nutrido exclusivamente de inteligência e de conhecimento puro, tal como se dá, aliás, com toda alma que se preocupa com receber o conhecimento que lhe convém, alegra-se quando chega o tempo de voltar a perceber a realidade, e se nutre com delícias da contemplação da verdade, até que o movimento circular a traga de novo para o ponto de partida. No decurso dessa ampla revolução contempla a justiça em si mesma, contempla a temperança, o conhecimento, não o conhecimento passível de crescimento e que difere de acordo com o objeto com que se relaciona e a que em nossa curta existência damos a denominação de seres, mas o conhecimento do que verdadeiramente existe. Depois de haver contemplado as outras realidades verdadeiras e delas se alimentado, mergulha a alma de novo no interior do céu e retorna para sua morada. Lá chegando, o cocheiro leva os cavalos para a manjedoura, lança-lhes Ambrósia e depois dá-lhes a beber néctar.

Assim é a vida dos deuses. Das outras almas, as dos homens, a que melhor se esforça por acompanhar os deuses e com eles parecer-se, eleva a cabeça do cocheiro para o outro lado do céu e se deixa arrastar pelo movimento circular; porém, perturbada pelos cavalos, mal pode contemplar as essências. A segunda melhor, ora se ergue ora se abaixa, mas, sempre atarefada com os cavalos, percebe umas tantas essências e deixa passar outras. As demais almas também desejam ardentemente alcançar a parte superior e se afanam nesse sentido; porém, não sendo suficientemente fortes, caem para a parte inferior da abóbada, amontoam-se, machucam-se, procurando cada uma passar à frente da vizinha. A confusão é enorme; há luta e o suor escorre em bagas e, por falta de perícia dos cocheiros, muitas almas ficam estropiadas e chegam a perder parte das asas. Depois desse trabalho insano, todas voltam sem terem conseguido contemplar a realidade, e, uma vez dali afastadas, alimentam-se apenas com a Opinião.. a razão de tamanho empenho de contemplar a Planície da Verdade, está no fato de nascer justamente naquele prado o alimento adequado para a porção mais nobre da alma e de nutrir-se com isso a natureza das asas que confere à alma mais leveza. A lei de Adrasteia é a seguinte: toda alma que no séqüito de algum deus consegue contemplar algo das verdadeiras realidades, fica livre de padecimentos até à revolução seguinte, e se sempre conseguir isso mesmo, nunca mais virá a sofrer coisa nenhuma. Quando, ao revés disso, por incapacidade de acompanhar os deuses, nada percebe das essências e, pelo efeito de alguma desgraça intercorrente, torna-se pesada, em decorrência mesmo de tal fato perde as asas e cai no chão: há uma lei que a proíbem entrar no corpo de algum animal logo na geração seguinte, como também determina que a que teve visão mais rica penetre no germe de um homem destinado a ser amigo da sabedoria e da beleza ou cultor das Musas e do amor; a alma colocada em segundo lugar dará um rei legítimo, potentado ou guerreiro de prol; a terceira classificada, tornar-se-á político, ecônomo ou comerciante; a quarta, um ginasta amigo dos exercícios físicos ou algum entendido na cura das doenças do corpo; a quinta terá vida de adivinho ou de iniciado nos mistérios; a sexta será poeta ou alguém afeito às artes da imitação; a sétima, artista ou lavrador; a oitava, sofista ou demagogo, e a nona, algum tirano. Em todos esses estados,os que viveram de modo justo alcançam melhor sorte; quem praticou injustiça, destino cem vezes pior.

Cada alma não retorna ao ponto de partida senão depois de decorridos dez mil anos, nem recupera as asas antes desse prazo, com exceção de quem se dedicou sem dolo à filosofia e dos que votaram aos jovens afeição verdadeiramente, filosófica. Nesses casos, no terceiro período de mil anos, se três vezes a fio elas escolherem o mesmo gênero de vida, voltam a adquirir asas e dali se afastam no fim de três mil anos. As demais, escoado o termo da primeira existência, são submetidas a julgamento, depois do qual umas tantas descem para prisões correcionais embaixo da terra, a fim de cumprirem a pena cominada, enquanto outras, aligeiradas pela sentença, são conduzidas para determinado lugar do céu, onde levam uma vida mais digna do que a anteriormente vivida sob a forma humana. Decorridos mil anos, tanto estas como aquelas terão de submeter-se à sorte para escolherem a segunda vida, de acordo com seu próprio alvedrio. Então, uma alma de homem poderá entrar no corpo de algum animal, e o inverso: entrar no homem a alma de animal que já tivesse sido homem, pois jamais adquirirá essa forma a alma que em nenhum tempo alcançou a contemplação da Verdade. Realmente, a condição humana implica a faculdade de compreender o que denominamos idéia, isto é, ser capaz de partir da multiplicidade de sensações para alcançar a unidade mediante a reflexão. É a reminiscência do que nossa alma viu quando andava na companhia da divindade e, desdenhando tudo o a que atribuímos realidade na presente existência, alçava a vista para o verdadeiro ser. Daí, justificar-se só ter asas o pensamento do filósofo, porque este se aplica com todo o empenho, por meio da reminiscência, às coisas que asseguram ao próprio deus a sua divindade. Só atinge a perfeição do indivíduo que sabe valer-se da reminiscência e foi devidamente iniciado mistérios. Indiferente às atividades humanas e ocupado só com as coisas divinas, geralmente passa por louco, já que o vulgo não percebe que ele é inspirado.

A isto tendia todo o discurso relativo à quarta forma de delírio. Quando, à vista da beleza terrena e, despertada a lembrança da verdadeira beleza, a alma readquire asas e, novamente alada, debalde tenta voar, à maneira dos pássaros dirige o olhar para o céu, sem atentar absolutamente nas coisas cá de baixo, do que lhe vem ser acoimada de maníaca. Porém o que eu digo é que essa é a melhor modalidade de possessão, a de mais nobre origem, tanto em quem se manifesta como em quem dele a recebeu. O indivíduo atacado de semelhante delírio, sempre que apaixonado das coisas belas, é denominado amante. Conforme disse há pouco, toda alma de homem já contemplou naturalmente a verdadeira realidade, sem o que não teria nunca adquirido essa forma; porém não o é igualmente para todas, à vista das coisas terrenas, recordar-se das coisas celestes, o que se dá tanto com as que as perceberam de corrida como com as que tiveram a infelicidade de cometer alguma injustiça por influência de más companhias e de esquecer os mistérios sagrados contemplados naquela ocasião. Assim, são bem poucas as que conservam a lembrança do que viram. Sempre que essas poucas percebem alguma imagem das coisas lá do alto, ficam tomadas de entusiasmo e perdem o domínio de si mesmas. Porém não sabem o que se passa com elas, por carecerem de percepção bastante clara, pois em relação à justiça, à temperança e tudo o mais que a alma tem em grande estima, as imagens terrenas são totalmente privadas de brilho; com órgãos turvos e, por isso mesmo, com assaz dificuldade, é que as poucas pessoas que se aproximam das imagens conseguem reconhecer nelas o gênero do modelo original. Porém a Beleza era muito fácil de ver por causa do seu brilho peculiar quando, no séqüito de Zeus, tomando parte no coro dos bem-aventurados e os demais no de outra divindade, gozávamos do espetáculo dessa visão admirável e, iniciados nesse mistério que, com toda a justiça, pode ser denominado sacratíssimo, e que celebrávamos na plenitude da perfeição e livres dos males que nos alcançam no futuro, fomos admitidos a contemplar sob a luz mais pura aparições perfeitas, simples, imutáveis, puros também e libertos deste cárcere de morte que com o nome de corpo carregamos conosco e no qual estamos aprisionados como a ostra em sua casca.

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