A inútil dureza da condição masculina
Jurandir Freire Costa
Eduardo Ferreira
Agostinho tinha 19 anos. Segundo a imprensa, um mês antes de entrar para a
Escola Naval, no Rio, seu pai lhe havia pedido que deixasse a Marinha. Eduardo
respondeu: "Só saio da Marinha oficial ou morto". Saiu morto.
No dia 23/1/96 foi
obrigado a fazer exercícios físicos excessivos sob um calor extenuante e morreu
em conseqüência de um choque térmico. Sua temperatura chegou a 42ºC e a
hipertemia provocou edema cerebral, coagulação intravascular, insuficiência
respiratória e parada cardíaca. No dia em que morreu, já havia dado sinais de
que não estava suportando os exercícios. Desmaiou, e o instrutor limitou-se a
comentar: "Ele tem mais é que morrer. Um fraco não pode ficar entre a gente".
Guardemo-nos de ver a
morte de Eduardo como coisas de caserna. A disciplina militar é, seguramente,
severa e, muitas vezes, desmedida. Mas acidentes deste tipo também acontecem na
vida civil e só ocorrem porque estão virtualmente inscritos na crença dominante
de que assim "se faz um homem". Quartel, escola, casa, rua etc.,
pouco importa. O importante são os mecanismos de brutalidade constitutivos da
identidade masculina.
Há muito, Robert
Musil, em "O Jovem Tõrless", e Raul Pompéia, em "O Ateneu",
descreveram como se fabrica um "verdadeiro macho" com direito a
respeito, temor e bajulação dos cidadãos de primeira classe. Primeiro, pela
força, ensina-se ao jovem como dominar fisicamente seu concorrente; segundo, à
custa de humilhações, ensina-se como oprimir quem está embaixo e curvar-se
perante os de cima.
A tática, retomando o
achado de Peter Gay, é "o cultivo do ódio"; a estratégia, a
domesticação da agressividade. Trata-se de suscitar o impulso agressivo do
sujeito, de excitá-lo, de deixá-lo em estado de prontidão para, então,
dirigi-lo em favor de quem manda. Como mostrou Stanley Kubrick, em
"Nascido para Matar", o refrão, "Sir, yes, Sir", "Sir,
no Sir", é o mandamento número um desta moral. Ser um homem é repetir o
mandamento, até torná-lo uma resposta automática à voz do dono. Arrogância e
servilismo são a dupla face da educação masculina em nossa cultura. Quem chega
lá é "um vencedor"; quem não chega, vivo ou morto, é "um
vencido".
É verdade, a
violência masculina não é exclusiva de hoje. Dos rituais de iniciação, em
sociedades etnológicas, aos elogios das guerras nas sociedades antigas e
modernas, fizemos dos homens guardiões do "inferno" de onde cada
"novo céu" extrai a energia para manter-se, como disse Nietzsche.
Mas entre a
constatação do fato e sua aceitação o passo é grande. O que foi não tem
necessariamente de continuar sendo. Alguns de nós, no passado, foram canibais,
infanticidas, inquisidores e empaladores, sem que isso nos leve a admitir tais
práticas como fundamento da cultura. A violência imposta aos homens, em sua
educação, é, atualmente, ainda mais aberrante do que foi, pois nem sequer
dispõe dos elementos que, outrora, tornaram sua justificação plausível.
As sociedades que
legitimavam plausivelmente a violência dos homens regiam-se por códigos de
honras nos quais, de fato, exigia-se dos guerreiros coragem e bravura. Um
cavaleiro, um escudeiro e mesmo um duelista engajavam-se em disputas em que
havia aposta e risco que podiam ser pagos com a vida. A ordem
democrático-burguesa quis justamente evitar este gênero de heroísmo. Perdas de
vida e derramamento de sangue, só em caso de proteção aos princípios
democráticos.
O moderno heroísmo, o
da justiça e da igualdade, dispensa mortes a granel. Como na antiga ''polis'',
os melhores são os que podem vir a público opinar sobre o que é bom para todos.
Além do mais, a esta versão ideal da ética democrática somou-se uma ideologia
prática baseada na regulação burocrática dos privilégios e na ação orientada
pelo cálculo do menor risco e do maior lucro, na qual palavras como honra,
vergonha e glória não fazem o menor sentido. Portanto, do lado do oportunismo
cínico como do lado do idealismo, a violência que acompanhava o ato de coragem
individual, na acepção guerreira, não sabe mais como se justificar.
Dizer, como disse o
instrutor, que Eduardo "tinha mais que morrer", pois era "um
fraco", é um exemplo ilustrativo desta violência estúpida e anacrônica. O
tal instrutor esqueceu-se de que era um soldado a serviço do país. Agiu como um
burocrata, imaginando contar com a proteção da corporação a que pertence. Sua
bravura é uma bravata, pois ele sabe que quem ousa desafiá-lo estará
enfrentando uma instituição e não um indivíduo. A suposta coragem destes
"heróis de carreira e carteirinha" resume-se ao gosto sádico de
humilhar os subordinados, escorados num poder de intimidação que, como bons
burocratas, não possuem, intermediam.
Neste caso como em
outros, com ou sem farda, perde-se a noção de grandeza e nobreza que, mal ou
bem, davam à morte dignidade e conserva-se da tradição a quintessência do pior,
ou seja, a violência rotineira e sem razão de ser. É assim que continuamos
reproduzindo nossos machos que, em casa, na rua ou nas casernas exibem a
prepotência dos que só lutam sabendo de antemão que vão ganhar e que matam
irresponsavelmente, porque sabem que não correm risco algum de morrer. Isto tem
um nome: covardia.
A tragédia de Eduardo
mostra o ferro e o fogo de onde sai a inútil dureza da condição masculina.
Precisamos convencer-nos de que ser homem pode ser algo bem mais honrado e
digno do que rosnar diante dos indefesos e sacudir a cauda diante de quem tem
poder.
[Jornal Folha de São Paulo, Caderno
Mais!, domingo, 18 de fevereiro de 1996, p. 5-7]
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