Parte 1: éticas de princípios e éticas de consequências
Adaptado de: Julio Cabrera. De Hitchcock a Greenaway pela história da filosofia. São Paulo: Nankin, 2007.
No panorama contemporâneo, encontramos pelo menos dois sobreviventes de projeto ético moderno: éticas “de princípios” e “éticas de conseqüências”. As éticas de conseqüências afirmam que as ações morais são boas ou más em virtude do que se segue delas. Estas éticas supõem que não se trata tão-somente de boas ou más conseqüências em relação a quem executa as ações, mas também para todas as outras pessoas envolvidas e, em última instância, boas ou más para a humanidade, ou, pelo menos, “para o maior número de pessoas”.
No século XIX, John Stuart Mill criou o “utilitarismo”, um tipo de teoria conseqüencial. Também uma teoria que tem por objetivo a felicidade das pessoas: o que é bom ou mau para a maioria deve ser algo que acarrete a felicidade ou o contrário para essas pessoas. O princípio fundamental do utilitarismo assim reza: “O credo que aceita a utilidade ou princípio da maior felicidade como a fundação da moral sustenta que as ações são corretas na medida em que tendem a promover a felicidade e erradas conforme tendam a produzir o contrário da felicidade”. E, mais adiante: “(...) esse modelo não é a maior felicidade do próprio agente, mas a maior soma de felicidade conjunta.”
As “éticas de princípios” se opõem a cada um desses pontos. O principal representante de uma ética de princípios é Immanuel Kant. As principais críticas de Kant contra uma ética utilitarista, são basicamente as seguintes: as ações devem ser consideradas boas ou más na medida em que sejam realizadas por dever e porque a razão assim a ordena, e não atentando para as suas conseqüências. Pois uma consequência não pode ser considerada boa ou má em termos absolutos, devido às complexidades das contingências do mundo. Segundo Kant, a única coisa que podemos chamar de boa em si mesma, de maneira absoluta, é o que ele chama de “boa vontade” . Uma mera ética de conseqüências leva, necessariamente, a um “cálculo”, incompatível com a natureza da moralidade. Não poderia o nazismo ser defendido moralmente sobre bases utilitaristas e conseqüenciais, dizendo-se, por exemplo, que o extermínio de judeus foi uma condição necessária para a felicidade do maior número de cidadãos alemães, no mundo?
Por outro lado, Kant nega que a felicidade (ainda a felicidade “da maioria”) possa ser colocada na base da moralidade das ações, pois a felicidade é um conceito vago e subjetivo, e a felicidade de uns não é a de outros. A moral deverá estar baseada em alguma coisa que possa ser ordenada imperativamente, e a felicidade não é desse tipo. De toda forma, as pessoas, como seres naturais, buscam a felicidade, ainda que ela não lhes seja imperativamente ordenada: “Um mandamento que ordenasse a cada um procurar tornar-se feliz seria uma loucura; com efeito, jamais se ordena a alguém o que ele quer inevitavelmente por si mesmo (...)” .
Kant dirige uma crítica frontal contra todas as morais de sentimentos, defendendo uma moral racional. Os sentimentos estão vinculados ao particular. A moralidade há de se basear, em última instância, no dever, não na felicidade, pois o dever pode universalizar-se; a felicidade não. A universalidade é uma exigência racional, contida na famosa primeira formulação do imperativo categórico: “Age de tal modo que a máxima de tua vontade possa valer sempre ao mesmo tempo como princípio de uma legislação universal”. Esse princípio, incondicionalmente, ordena e pressupõe a liberdade como baseada na autonomia, na capacidade de não deixar as próprias ações se determinarem exclusivamente pelos objetos.
Ele considera o valor da pessoa humana como um fim em si mesmo. Daí surge a conhecida segunda formulação do imperativo: “Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre como fim e nunca simplesmente como meio”. Kant era pessimista a respeito da natureza humana, considerando os homens como seres continuamente determinados por suas inclinações e sempre numa insaciável procura do prazer, sendo assim muito pouco dispostos a agirem moralmente. Porém, também considerava que cada homem era sagrado em sua pessoa, na humanidade que existe dentro de cada um.
Esse tipo de moral pode ser extremamente rigoroso nas aplicações concretas. No famoso artigo sobre a mentira, Kant nega, por exemplo, que um ser humano tenha algum pretenso “direito a mentir por amor à humanidade”, somente porque a mentira possa ter “boas conseqüências”, ou mesmo por tratar-se de uma “pequena mentira” caridosa. Para uma moral de princípios, não há diferença moral importante entre “pequenas” e “grandes mentiras”, posto que não mentir é um imperativo incondicional, que não reconhece exceções, e cuja transgressão quebra o princípio moral, e permite que seja quebrada a própria confiabilidade entre as pessoas.
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