terça-feira, 21 de junho de 2011

Zizek, por José Miguel Wisnik

Publicado em O Globo, 04/06/2011, Segundo Caderno, p. 2

Ainda não li o “Em defesa das causas perdidas”, de Slavoj Zizek. Mas li a entrevista a Miguel Conde que saiu no Prosa & Verso de sábado passado [publicada abaixo: http://filoescola.blogspot.com/2011/06/entrevista-com-zizek.html], que pode ser considerada uma peça altamente significativa do teatro ideológico contemporâneo. Zizek combina a desenvoltura filosófica de quem se formou em Hegel e Marx na Iugoslávia socialista com a descoberta da psicanálise lacaniana e com o seu comprovado interesse pela cultura pop. A manchete provocadoramente ambivalente (“A novidade do comunismo”), as fotos, as chamadas, faziam das duas páginas elas mesmas uma peça pop. Ao contrário do que disse Emir Sader na sua falhada assunção à diretoria da Casa de Rui Barbosa, Zizek não atua somentepor fora, mas por dentro da mídia. Terry Eagleton, que o considera talvez o maior intelectual contemporâneo, diz da gestualidade excitante do seu estilo algo que toca ao mesmo tempo no Real psicanalítico e no slogan da Coca-Cola: “Enjoy!”

Não me interessa diluir aqui a originalidade intrigante dessa posição. Zizek se apresenta como um comunista, sacudindo provocativamente de si aquilo que soa tardio e deperescente nessa reivindicação. Reabilita a ideia de revolução num sentido diferente do esperado, como veremos. Afeito aos curtos-circuitos dialéticos e aos paradoxos lacanianos, afirma com todas as letras que “o resultado geral do comunismo foi um fiasco”. Mais que isso, diz que as causas desse fracasso histórico não se explicam pelo estalinismo nem pela má realização da ideia marxista. “Se as coisas deram tão terrivelmente errado com Stalin, isso significa que havia uma falha estrutural no próprio edifício de Marx.”

É aqui que eu gostaria que a entrevista tivesse feito um zoom, e que Zizek tivesse nomeado, então, a falha estrutural no edifício de M a r x . N ã o m e lembro de ter visto essa parada crucial em qualquer dos textos dele que li. O que fica dito, no entanto, é que o fracasso dos comunismos é um sintoma — freudiano, ele m e s m o d i z — apontando “para algo errado na ideia” como um todo (considerando que a própria ideia de totalidade hegeliana é uma categoria crítica “que implica perceber as maneiras pelas quais um certo fenômeno dá errado como sendo parte da essência desse fenômeno”).

Esse é ponto chave da posição de Zizek: uma radicalização psicanalítica dos temas marxistas, em que a revolução, enquanto “transformação das relações sociais”, aparece como emergência de uma psicanálise coletiva, atualizando um recalcado social. Me lembro que a edição em inglês de um de seus livros políticos, talvez o próprio “Em defesa das causas perdidas”, trazia na capa um quadro realista de Lênin em seu gabinete, fazendo anotações. A continuação da imagem, que se estendia pela contracapa, mostrava um divã vazio, postado ao lado da mesa do escritório do grande líder revolucionário. A imagem tinha um valor de condensação alegórica do pensamento de Zizek: Lênin enquanto Freud, a psicanálise como chave da revolução. É só por isso que a fala de Zizek, esse comunista por declarada provocação, não se baseia em verdades estabelecidas, mas no apontar para um lugar vazio onde a ideia de revolução também estaria no divã, nem por isso morta.

Me impressiona nesse ponto exato da entrevista o salto, senão o lapso também sintomático: ali onde se esperaria obviamente que ele desenvolvesse o fato de que os marxistas não conseguem admitir que haja uma falha no edifício teórico que os sustenta, Zizek diz que “os liberais de hoje não conseguem admitir” que o resultado errado de algo é o sintoma de que há algo de errado na ideia, no caso, na ideia liberal da associação do capitalismo com liberdade. O salto brusco de uma coisa a outra dá a sensação de que a psicanálise do marxismo fica interrompida, o exame do seu sintoma informulado (por acaso óbvio?) e a crítica da posição liberal, nesse caso, soando como um tampão, por mais contundente que possa ser.
(O efeito da substituição parece uma daquelas piadas do socialismo real do Leste Europeu, que ele mesmo gosta de dar como exemplo). Zizek vê na China atual o sintoma de um capitalismo autoritário a desnudar o fato de que a vocação do capitalismo não é congenitamente democrática.

Se a defesa da revolução por Zizek me parecia ressoar naquele gosto sinistro pelo terror jacobino, pelo frenesi das cabeças decapitadas que assalta a imaginação daqueles que detestam declaradamente o carnaval, como ele, não é isso que leio na entrevista. A violência revolucionária, diz Zizek, não é a da tortura e do assassinato, do terror de Estado (a denunciar sintomaticamente que a revolução não se deu), mas da mudança nas relações de poder ali onde elas são dadas como impossíveis e insustentáveis. Mahatma Gandhi, diz Zizek, instaura não violência física mas violência revolucionária, levando as relações de poder para além do limite em que elas pareciam insuperáveis. Mas o maior exemplo, segundo ele próprio, é, afinal, o das democracias burguesas, cujo acontecimento é o “milagre” da realização de algo inconcebível ao mundo pré-moderno. Recuperar a causa perdida da revolução é levar as disfuncionais democracias representativas contemporâneas ao ponto aparentemente impossível em que se possa enfrentar problemas insolúveis na ordem atual.

Mas, pergunto, é possível fazer essa psicanálise revolucionária do modelo capitalista liberal global sem completar a psicanálise do marxismo? E, sem fazê-lo, que sentido tem reivindicar-se comunista, para além de produzir o efeito retórico da assumida provocação?

Um comentário:

  1. Outras reações à entrevista de Zizek podem ser vistas em:
    http://antoniocicero.blogspot.com/2011/05/sobre-recente-entrevista-de-slavoj.html
    e
    http://rafaelestrelacanto.wordpress.com/2011/06/01/carta-a-antonio-cicero-sobre-o-post-sobre-a-recente-entrevista-de-slavoj-zizek-em-antoniocicero-blogspot-com/

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