Tradução de artigo do The Guardian sobre o livro “O senhor das moscas” (por Marcelo Guimarães; revisão: Maria Fernanda Picanço).
O senhor das moscas,
de William Golding (1954)
Robert McCrum
Da série "Os cem melhores romances"
Rejeitado a princípio
como “lixo e enfadonho”, o livro que conta a fábula da ilha deserta, uma distopia descrita brilhantemente,
tornou-se desde então um clássico.
Como todos os mais recentes romances desta lista (69-73), O
Senhor das Moscas deve muito de seu ímpeto e poder sombrios à Segunda Guerra
Mundial, na qual Golding serviu como um jovem oficial da marinha. Suas
experiências em Walcheren em 1944 nutriram um apetite por extremos quase
medievais, misturando ficção e filosofia, o que nem sempre é uma receita para o
sucesso em romances. Entretanto, O Senhor das Moscas permanece tanto universal
como de fato profundamente inglês, com laços com Defoe, Stevenson e Jack London
(Robinson Crusoe, Kidnapped, Coração das Trevas, nesta série - Os cem melhores romances).
Nos anos 1950, agora como professor numa escola de primeiras
letras, Golding estava lutando para fazer de si mesmo um romancista, tendo já
publicado um livro de poemas em 1934. Sua esposa, Ann, que exerceu um papel
crucial em sua vida criativa, sugeriu A Ilha de Coral, de R.M. Ballantyne, como
uma fonte de inspiração. O resultado: uma fantasia distópica de sobrevivência
pós-apocalíptica de um grupo de adolescentes e pré-adolescentes numa remota
ilha tropical. Mas esta é completamente diferente do mundo de Robinson Crusoé
ou de Long John Silver.
O Senhor das Moscas (cujo título deriva de uma transcrição
de “Beelzebub”) é o trabalho de um professor inglês com um gosto por grandes
temas e engaja o leitor em três níveis. Primeiro, é um estudo acurado de
adolescentes liberados da coleira das regras e das convenções. Os principais
personagens – Ralph, Jack e Porquinho – representam arquétipos do estudante
inglês, mas Golding entra em suas peles e os faz reais. Ele sabe como eles
pulsam e recorre a sua própria experiência para explorar a ruptura
aterrorizante de sua comunidade.
Em segundo e terceiro lugares, O Senhor das Moscas apresenta
uma visão da humanidade inimaginável antes dos horrores da Europa nazista, e
mergulha em especulações sobre a espécie humana no estado de natureza. Desolador
e específico, porém universal, mesclando raiva e angústia, O Senhor das Moscas
é tanto um romance dos anos 1950, quanto de todos os tempos. Um estranho tipo
de paraíso se torna um retrato desolador da vida em um mundo pós-nuclear. Talvez
não seja surpresa que ele tenha se tornado um clássico cult dos anos 60, sendo
lido tão avidamente como O Apanhador no
Campo de Centeio, To kill a mocking bird
e On the road.
Antes de completar seu romance, William Golding tinha sido apenas
um tímido e estranho professor de inglês na escola Bispo Wordsworth, em Salisbury, apelidado de “Scruff” (desleixado).
O Senhor das Moscas, escrito durante 1952-1953, foi sucessivamente rejeitado
antes de sua publicação triunfante em 1954. Primeiramente intitulado “Estranhos
de dentro” (Strangers from Within), o
romance não apenas recebeu um desprezo quase universal, ele foi também o último
lance desesperado de um professor esquisito que tinha lutado por anos para
encontrar um público.
Sua filha Judy, nascida no final da guerra, era muito jovem para lembrar de seu pai escrevendo o romance, mas ela me disse numa entrevista alguns anos atrás: “Eu me lembro das cópias do manuscrito indo e vindo, saindo e voltando. Nós vivíamos com uma renda bastante apertada, de modo que a postagem deve ter sido uma despesa significativa”.
A lenda desse romance icônico do pós guerra tornou-se
conhecida, com muitos episódios. Quando o romance chegou pela primeira vez na
editora Faber & Faber (que seria quem a publicaria afinal), ele era um
manuscrito com mordida de cachorro, que tinha obviamente passado por muitas
outras editoras. Sua primeiro leitora interna, uma certa Miss Perkins,
descartou-o tornando famosa a avaliação negativa ao dizer que o romance era uma
“fantasia absurda e desinteressante sobre a explosão de uma bomba atômica nas
colônias. Um grupo de crianças que aterrissam numa terra selvagem perto da Nova
Guiné. Lixo e enfadonho. Insípido”. Entretanto, um jovem editor recém
contratado, Charles Monteith, discordou. Ele viu que o primeiro capítulo (sobre
as consequências da bomba) podia ser descartado e lutou pelo livro. Tendo
persuadido Golding a cortar e reescrever, encaminhou-o para publicação. Monteith,
que eu cheguei a conhecer bem, estava fazendo o que Maxwell Perkins fez por
Thomas Wolfe ou Gordon Lish por Raimond Carver. Esta é uma habilidade rara no
campo da edição hoje em dia.
Por fim, o romance vendeu mais de dez milhões de cópias, mas
a fama e o sucesso não vieram do dia para a noite. A primeira impressão, de
cerca de três mil cópias, vendeu vagarosamente. Gradualmente, as qualidades do
livro conquistaram atenção qualificada. Um ponto de virada ocorreu quando E. M.
Forster elegeu O Senhor das Moscas como seu “melhor romance do ano”. Outras
críticas o descreveram como “uma aventura de primeira categoria, uma parábola de
nossos tempos”. Judy Golding me disse que foi somente “cinco anos mais tarde,
depois que o filme (dirigido por Peter Brook) apareceu, que eu notei que os
pais de meus amigos se tornaram subitamente interessados no papai”.
Desde então, o romance se tornou uma leitura cult. Quando eu
trabalhei na Farber nos anos 1980, nós costumávamos reimprimi-lo, cem mil
cópias de cada vez, ano após ano. Acredito que isso ainda aconteça. Essa é uma
definição de clássico, um livro que mesmo quando o lemos pela primeira vez, nos
dá a impressão de reler algo que já lemos antes. Nas palavras de Ítalo Calvino,
“um clássico é um livro que nunca esgotou totalmente o que ele tem a dizer para
seus leitores”.
O Senhor das Moscas exerceu larga influência sobre muitos
escritores ingleses e americanos, incluindo Alex Garland, cujo A Praia faz
homenagem ao original de Golding. Nigel Williams também adaptou O Senhor das
Moscas para o teatro, numa versão poderosa e contundente, que ajudou a
sustentar a trajetória do romance.
Três outros livros de William Golding:
The
Inheritors
(1955); The Spire (1964); Rites of Passage (1980).