terça-feira, 5 de julho de 2011

Kant na lista de Schindler?

Parte 2: a moralidade trágica no cinema

Adaptado de: Julio Cabrera. De Hitchcock a Greenaway pela história da filosofia. São Paulo: Nankin, 2007.


O filósofo alemão contemporâneo Karl-Otto Apel coloca o problema das condições de aplicação responsável de uma moral universal de inspiração kantiana, dentro de uma sociedade que, de fato, não segue tal moralidade, e que inclusive sistematicamente a desobedece, uma sociedade tal que nela “o estado de direito não se realizou ou (...) não funciona”. “Uma pessoa deve, honestamente, pagar seus impostos quando outras não o fazem?” Apel escreve: “A resposta a esta pergunta somente pode ser, em minha opinião, a seguinte: (...) não é possível exigir moralmente que, sem ponderação responsável dos resultados e subconsequências possíveis de sua ação, deva comportar-se segundo um princípio moral incondicionalmente válido. (...) no caso de um encontro com um criminoso, ou com uma organização como a Gestapo, não poderíamos renunciar à mentira, à fraude e, inclusive, ao uso da força, senão deveríamos tentar agir estrategicamente de modo adequado à situação (...)” . O exemplo do nacional-socialismo parece constituir a maior contestação da adoção da ética kantiana, em favor de alguma forma de ética conseqüencial, seja o do utilitarismo, seja uma postura transcendental pós-metafísica ao estilo de Apel.
Também Peter Singer, que explicitamente cita o caso de Oskar Schindler, opta por uma ética conseqüencial, não kantiana, em situações dramáticas como o nacional-socialismo: “Oskar Schindler era um pequeno industrial alemão. Durante a Guerra, ele tinha uma fábrica nos arredores de Cracóvia, na Polônia. Quando os judeus poloneses começaram a ser mandados para os campos de extermínio, Schindler reuniu uma força de trabalho constituída por judeus provenientes dos campos de concentração e dos guetos. Os trabalhadores eram em número muito maior do que a fábrica precisava e, para protegê-los, Schindler recorreu a várias estratégias ilegais inclusive recorrendo ao suborno de membros da SS e de outros oficiais. Gastava seu próprio dinheiro para comprar alimentos no mercado ilegal, pois era preciso complementar as escassas rações oficiais que obtinha para seus empregados. Graças a estes métodos, pôde salvar a vida de mais ou menos mil e duzentas pessoas”. Singer comenta: “O projeto nazista de extermínio dos judeus foi, obviamente, uma atrocidade, e Oskar Schindler estava completamente certo em fazer o que fez, para impedir que alguns judeus se tornassem suas vítimas (dado o risco que correra, foi também moralmente heróico ao fazê-lo)” .
Eu quero sustentar aqui que A lista de Schindler, o filme de Steven Spielberg, pode ser visto como um poderoso argumento visual em favor de uma ética de princípios de tipo kantiano, contra éticas meramente consequencialistas, mesmo sendo uma obra que trata do nazismo que, como vimos, pareceria constituir o contra-argumento paradigmático contra éticas de princípios, e contra a ética de Kant em particular. O lugar-comum, sempre repetido, consiste em dizer que a ética kantiana é “inaplicável” em situações-limite como as mostradas abundantemente no filme, e que isso deveria levar à adoção de uma ética conseqüencial “adaptada às circunstâncias”. Vou tentar mostrar que o filme de Spielberg problematiza essa interpretação da ética kantiana como fracassada diante de situações como o nazismo, e que a reflexão fílmica que ele propõe dissolve a nítida distinção entre esses dois tipos de teoria moral moderna, em benefício de uma terceira possibilidade (pós-moderna?), que poderíamos denominar de moralidade trágica.
No início do filme, Oskar Schindler (Liam Neeson) é mostrado como um negociante pragmático que lucra, de maneira pouco escrupulosa, com a situação de penúria dos judeus. Na cena em que o trabalhador maneta insiste em cumprimentá-lo em seu escritório, Schindler se mostra irritado, adota atitudes egoístas e arrogantes. Mais adiante, uma bonita mulher, que intercede em favor de seu velho pai, só consegue ser recebida por Schindler quando se veste de maneira atraente. A cena decisiva da conscientização moral de Schindler parece ser a da evacuação do gueto de Varsóvia, por ele assistida durante um passeio a cavalo. Mas se as futuras ações de Schindler em favor dos judeus são consideradas “moralmente boas”, elas não parecem motivadas, primeiramente, pelo puro dever (“Devo tratar de aliviar as pessoas que sofrem, na medida em que dessa maneira elas sejam tratadas como fins, mediante uma máxima que sempre se pode universalizar”), nem tampouco observando-se as conseqüências delas (“Devo tratar de aliviar as pessoas que sofrem porque isso trará como consequência a felicidade do maior número”). As ações de Schindler parecem muito mais motivadas por algo como um sentimento básico de repugnância e de repulsa, não redutíveis a uma análise fria nem de princípios nem de conseqüências. O cinema possui a “linguagem” apropriada para mostrar a importância destes impactos emocionais primitivos dentro da constituição de uma consciência moral.
Os sentimentos foram excluídos por Kant, da motivação moral genuína, porque ele pensa nos sentimentos, como foi visto, no registro da busca insaciável do prazer por parte de seres humanos fracos e autobenevolentes. Mas, ao contrário, o filme de Spielberg mostra que os sentimentos podem também ser pensados no registro da pura e simples fuga da dor insuportável e que essa fuga (que não é de forma alguma busca pelo prazer, e sim uma luta pela mera sobrevivência) pode constituir motivo legítimo de ação, de um ponto de vista moral.
Utilizando a “linguagem” do cinema, Spielberg não faz afirmações pontuais ou diretas sobre Schindler, e sim o mostra vivendo, sintética e extensivamente, em vários momentos significativos. Nesta “expansividade temporal” dos conceitos-imagem, Schindler não se mostra permanentemente como pessoa moral, tal como na linguagem escrita da filosofia, onde as exigências do conceito-ideia não exibem o movimento que levaria da indiferença moral à tomada de consciência. O cinema não alcança a sua própria universalidade mediante algum tipo de “resumo conceitual”, e sim mediante a demonstração de fragmentos de uma vida, de comportamentos fluidos e frágeis. A filosofia escrita refere-se somente a um momento arbitrariamente privilegiado da experiência, furtando a fluidez da vida mediante uma idealização, o que nos induz a pensar que as posturas éticas podem ser destacadas e definidas.
Se Spielberg se opõe a Kant e à sua filosofia simplista dos sentimentos, por outro lado tampouco os princípios utilitaristas são aqui relevantes, já que não é em virtude de suas conseqüências que as ações de Schindler podem ser consideradas moralmente boas. Em uma situação como aquela, é quase absurdo falar da “felicidade da maioria”. Para Schindler, os números são irrelevantes. Uma pessoa ou mil e duzentas não farão diferença,posto que, para ele (segundo o mostra a cena do discurso final, em que Schindler se lamenta de não ter vendido seu carro e podido salvar com isso uma única vida humana a mais), a vida é considerada, kantianamente, como um fim em si mesmo, antes de qualquer consideração numérica: as ações de Schindler não são boas por ter conseguido salvar mil e duzentas pessoas do holocausto, e nem sequer o seria se ele tivesse conseguido salvar tão-somente só uma vida humana. Essas ações são boas pela pura intenção de Schindler de salvá-las, mesmo que não tivesse conseguido fazê-lo em nenhum caso (ainda que, digamos, os oficiais nazistas tivessem fuzilado todos os seus trabalhadores antes do final da Guerra). Spielberg acentua no filme o valor intrínseco da vida humana, para além de cálculos utilitaristas, que, na melhor das hipóteses, virão depois. Se Schindler mente aos oficiais nazistas, não é porque isso tenha primeiramente boas conseqüências, e sim, em primeiro lugar, porque certas situações trágicas fazem com que a vida humana somente possa ser honrada em si mesma não dizendo a verdade: para além do utilitarismo conseqüencial e do rigorismo kantiano, o filme apontaria para uma moralidade trágica que contém um elemento kantiano inextirpável, o valor da pessoa humana como fim.
O argumento do valor intrínseco da vida humana é analisado imageticamente por Spielberg por meio do personagem que é o próprio conceito-imagem dessa noção, mas, paradoxalmente, por ser aquele para quem a vida humana não tem nenhum valor: o Herr comandant Amon Goeth (Ralph Fiennes). Numa cena com Schindler e Amon, o primeiro tenta, mediante um truque, criar em Amon algum sentimento de piedade, dizendo-lhe que o verdadeiro poder, pelo qual Amon está obcecado, consistem em perdoar as suas vítimas, como o faziam os imperadores romanos. Nesta cena, Schindler cuida para que as ações de Amon tenham, pelo menos, “boas conseqüências” mediante um motivo ilegítimo, já que é absolutamente impossível que Amon consiga mover as suas ações por qualquer tipo de motivo moral. Schindler tenta fazer de Amon, pelo menos, um utilitarista cínico, o qual, em se tratando de um oficial nazista, representa um tremendo progresso moral. Assim como os subornos praticados por Schindler poderiam ser considerados como lamentáveis epifenômenos de sua boa vontade, também as “boas ações” de Amon poderão ser epifenômenos aproveitáveis de sua imutável má vontade. De todas as maneiras, a jogada de Schindler fracassa. Amon tenta primeiramente aplicar esse conselho na pessoa do pequeno Lisiek, sem empregado, mas a crueldade fala mais alto. Em meio ao campo de concentração, desde a sua sacada, todas as manhãs Amon se diverte matando prisioneiros com seu fuzil de mira, e assim o faz com o jovem Lisiek, a quem graciosamente acaba de perdoar (seguindo o sorrateiro conselho de Schindler), e que morre por não ter conseguido limpar as manchas da banheira.
A situação dos homens trabalhando constantemente sob a mira da arma de Amon é um arrepiante conceito-imagem da desvalorização absoluta da vida humana. Esse conceito já havia sido apresentado em outros momentos do filme, por exemplo quando Schindler consegue resgatar seu assistente, o contador Isaak Stern (Bem Kingsley), do trem que o levava para o campo de concentração (o soldado encarregado comenta: “Na verdade, para nós é a mesma coisa, um judeu a mais ou a menos não faz a menor diferença”). Ou a imagem do velho trabalhador “morrendo” diversas vezes por causa de um revólver que não funciona. A prisioneira Helen Hirsch, obrigada a ser a empregada doméstica de Amon, diz a Schindler: “Cada vez mais a gente se dá conta de que não há regras, de não há nada que você possa fazer ou dizer que te deixe a salvo”.
Mas, precisamente, as ações de Amon Goeth contra o afirmado pelas morais utilitaristas, não são más ou monstruosas, primariamente, em virtude de suas conseqüências, como se disséssemos: é mau que Amon Goeth, de sua sacada, mate prisioneiros com seu fuzil, porque isso traz a infelicidade de um grande número de pessoas. Parece que, da mesma forma que ocorre na conscientização moral de Schindler, há na mostruosidade moral de Amon algo de mais primordial do que uma fria análise de conseqüências. Sua imoralidade provém de uma perversidade anterior, de um pathos de total desvalorização da vida humana. Assim como a moralidade de Schindler provém primariamente de uma comoção que o leva a valorizar a vida humana como um fim em si, a imoralidade de Amon provém primariamente de uma comoção contrária, que o leva a ver a vida humana como uma peça substituível e sem qualquer valor. Em nenhum dos dois casos são as conseqüências de ações o que é considerado primeiro, ainda que venham a ser importantes em um segundo momento.
É correta a análise conseqüencial que Peter Singer faz da conduta de Schindler? Ao subornar, mentir e roubar, foi a sua conduta uma total ruptura com os princípios da moral kantiana? Eu acredito que não. O filme de Spielberg mostra um terceiro tipo de moralidade, a que chamo de moralidade trágica: trata-se de uma moralidade guiada por princípios kantianos, em particular pela idéia do valor em si da pessoa, mas que, ao se confrontar com situações particularmente difíceis, deve exercer-se tragicamente, ou seja, contra seus próprios princípios. É o valor da pessoa o que será preservado mediante o suborno, o roubo e a mentira, e não primariamente as conseqüências das ações. O que situações como o nazismo mostram não é o fracasso da moral kantiana, e sim seu caráter trágico, ao ser obrigada a exercer-se em um “povo de demônios”, para usar uma expressão do próprio Kant. A linguagem sintética, expansiva e emocional do cinema é capaz de mostrar essa tragicidade da moral de princípios com cores particularmente vivas. Contra Peter Singer, Spielberg mostra Schindler não como um consequencialista, mas como um kantiano trágico.

Kant na lista de Schindler?

Parte 1: éticas de princípios e éticas de consequências

Adaptado de: Julio Cabrera. De Hitchcock a Greenaway pela história da filosofia. São Paulo: Nankin, 2007.

No panorama contemporâneo, encontramos pelo menos dois sobreviventes de projeto ético moderno: éticas “de princípios” e “éticas de conseqüências”. As éticas de conseqüências afirmam que as ações morais são boas ou más em virtude do que se segue delas. Estas éticas supõem que não se trata tão-somente de boas ou más conseqüências em relação a quem executa as ações, mas também para todas as outras pessoas envolvidas e, em última instância, boas ou más para a humanidade, ou, pelo menos, “para o maior número de pessoas”.
No século XIX, John Stuart Mill criou o “utilitarismo”, um tipo de teoria conseqüencial. Também uma teoria que tem por objetivo a felicidade das pessoas: o que é bom ou mau para a maioria deve ser algo que acarrete a felicidade ou o contrário para essas pessoas. O princípio fundamental do utilitarismo assim reza: “O credo que aceita a utilidade ou princípio da maior felicidade como a fundação da moral sustenta que as ações são corretas na medida em que tendem a promover a felicidade e erradas conforme tendam a produzir o contrário da felicidade”. E, mais adiante: “(...) esse modelo não é a maior felicidade do próprio agente, mas a maior soma de felicidade conjunta.”
As “éticas de princípios” se opõem a cada um desses pontos. O principal representante de uma ética de princípios é Immanuel Kant. As principais críticas de Kant contra uma ética utilitarista, são basicamente as seguintes: as ações devem ser consideradas boas ou más na medida em que sejam realizadas por dever e porque a razão assim a ordena, e não atentando para as suas conseqüências. Pois uma consequência não pode ser considerada boa ou má em termos absolutos, devido às complexidades das contingências do mundo. Segundo Kant, a única coisa que podemos chamar de boa em si mesma, de maneira absoluta, é o que ele chama de “boa vontade” . Uma mera ética de conseqüências leva, necessariamente, a um “cálculo”, incompatível com a natureza da moralidade. Não poderia o nazismo ser defendido moralmente sobre bases utilitaristas e conseqüenciais, dizendo-se, por exemplo, que o extermínio de judeus foi uma condição necessária para a felicidade do maior número de cidadãos alemães, no mundo?
Por outro lado, Kant nega que a felicidade (ainda a felicidade “da maioria”) possa ser colocada na base da moralidade das ações, pois a felicidade é um conceito vago e subjetivo, e a felicidade de uns não é a de outros. A moral deverá estar baseada em alguma coisa que possa ser ordenada imperativamente, e a felicidade não é desse tipo. De toda forma, as pessoas, como seres naturais, buscam a felicidade, ainda que ela não lhes seja imperativamente ordenada: “Um mandamento que ordenasse a cada um procurar tornar-se feliz seria uma loucura; com efeito, jamais se ordena a alguém o que ele quer inevitavelmente por si mesmo (...)” .
Kant dirige uma crítica frontal contra todas as morais de sentimentos, defendendo uma moral racional. Os sentimentos estão vinculados ao particular. A moralidade há de se basear, em última instância, no dever, não na felicidade, pois o dever pode universalizar-se; a felicidade não. A universalidade é uma exigência racional, contida na famosa primeira formulação do imperativo categórico: “Age de tal modo que a máxima de tua vontade possa valer sempre ao mesmo tempo como princípio de uma legislação universal”. Esse princípio, incondicionalmente, ordena e pressupõe a liberdade como baseada na autonomia, na capacidade de não deixar as próprias ações se determinarem exclusivamente pelos objetos.
Ele considera o valor da pessoa humana como um fim em si mesmo. Daí surge a conhecida segunda formulação do imperativo: “Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre como fim e nunca simplesmente como meio”. Kant era pessimista a respeito da natureza humana, considerando os homens como seres continuamente determinados por suas inclinações e sempre numa insaciável procura do prazer, sendo assim muito pouco dispostos a agirem moralmente. Porém, também considerava que cada homem era sagrado em sua pessoa, na humanidade que existe dentro de cada um.
Esse tipo de moral pode ser extremamente rigoroso nas aplicações concretas. No famoso artigo sobre a mentira, Kant nega, por exemplo, que um ser humano tenha algum pretenso “direito a mentir por amor à humanidade”, somente porque a mentira possa ter “boas conseqüências”, ou mesmo por tratar-se de uma “pequena mentira” caridosa. Para uma moral de princípios, não há diferença moral importante entre “pequenas” e “grandes mentiras”, posto que não mentir é um imperativo incondicional, que não reconhece exceções, e cuja transgressão quebra o princípio moral, e permite que seja quebrada a própria confiabilidade entre as pessoas.