sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Kant e o ensino de filosofia

Notícia do professor Immanuel Kant sobre a organização de suas preleções no semestre de inverno de 1765-1766
[in: KANT, I. Lógica. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1992. Tradução: Guido Antônio de Almeida]

O ensino da juventude envolve sempre a dificuldade de que somos forçados a nos adiantar aos anos com o discernimento e, sem aguardar a maturidade do entendimento, devemos transmitir conhecimentos que, segundo a ordem natural, só poderiam ser alcançados por uma razão mais exercitada e mais experimentada. É aí que tem origem os eternos preconceitos das escolas, mais tenazes e muitas vezes mais desenxabidos do que os comuns, bem como a tagarelice precoce dos jovens pensadores, mais cega do que qualquer outra arrogância e mais insanável do que a ignorância. Não obstante, esta é uma dificuldade que não se pode evitar de todo, porquanto, numa época de uma constituição civil tão cheia da atavios, os discernimentos mais sutis fazem parte dos meios de avançar e tornam-se necessidades que, por sua natureza, deviam ser colocadas entre os adornos da vida e, por assim dizer, entre as belezas supérfluas dela. No entanto, é possível, neste ponto também, acomodar mais o ensino público segundo a natureza, senão harmonizá-lo inteiramente com esta. Com efeito, visto que o progresso natural do conhecimento humano é tal que, primeiro, o entendimento se forma, na medida em que chega pela experiência a juízos intuitivos e, por meio destes, a conceitos, conceitos estes que, em seguida, são colocados pela razão [Vernunft] em relação com as razões [Gründe] e as conseqüências deles, para serem finalmente discernidos [erkannt] por meio da ciência num todo bem ordenado, o ensino também terá que seguir o mesmo caminho. De um professor espera-se, pois, que ele forme em seu ouvinte, primeiro, o homem sensato, depois o homem racional e, por fim, o douto. Semelhante procedimento tem a vantagem de que o aprendiz, mesmo que jamais chegue ao último grau, como em geral acontece, terá sempre ganho alguma coisa com o ensino e se terá tornado mais exercitado e mais atinado, senão perante a escola, pelo menos perante a vida.

Se invertermos esse método, o aluno vai abocanhar uma espécie de razão, antes mesmo que o entendimento tenha sido formado nele, tornando-se portador de uma ciência de empréstimo, , que nele estará, por assim dizer, apenas grudada e não desenvolvida, ao passo que suas aptidões mentais permanecerão tão estéreis como dantes, tendo se tornado, porém, com o delírio da sabedoria, muito mais corrompidas. Aqui está a causa de não raro se encontrarem pessoas doutas (na verdade instruídas) que demonstram pouco entendimento, bem como a razão por que as academias põem no mundo mais cabeças desenxabidas do que qualquer outra instituição da coisa pública.

A regra do comportamento é, pois, a seguinte: antes de mais nada amadurecer o entendimento e acelerar seu crescimento, exercitando-o nos juízos da experiência e despertando sua atenção para aquilo que as sensações comparadas de seus sentidos possam ensinar. Partindo destes juízos ou conceitos, ele não deve empreender nenhum vôo em direção a outros mais elevados e mais distantes, mas deve chegar até aí pela calçada natural e transitável dos conceitos inferiores que o levem mais longe; tudo, porém, em conformidade com aquela aptidão do entendimento que o exercício precedente houver necessariamente produzido nele e não em conformidade com aquela que o professor percebe, ou crê perceber, em si mesmo e que ele erroneamente também pressupõe em seu ouvinte. Em suma, ele não deve ensinar pensamentos, mas a pensar; não se deve carregá-lo, mas guiá-lo, se se quer que ele seja apto no futuro a caminhar por si próprio.

Semelhante didática, exige-a a própria natureza da Filosofia. Mas, como esta é propriamente uma ocupação para a idade adulta apenas, não é de admirar que surjam dificuldades quando se quiser acomodá-la à aptidão menos exercitada da juventude. O adolescente que acabou sua formação escolar estava acostumado a aprender. Ele pensa que, de agora em diante, vai aprender Filosofia, o que porém é impossível, pois agora ele deve aprender a filosofar. Vou me explicar com maior clareza. Todas as ciências que a gente pode em sentido próprio aprender podem se reduzir a dois gêneros: o histórico e o matemático. Entre as primeiras encontram-se, além da História propriamente dita, a História Natural, a Filologia, o Direito Positivo etc etc... Ora, visto que em tudo o que é histórico, a experiência própria ou o testemunho alheio, ao passo que em tudo o que é matemático, a evidência dos conceitos e a infalibilidade da demonstração constituem algo que está de fato dado e de que, por conseguinte, estamos aprovisionados e que é preciso apenas apanhar, nos dois casos é possível aprender, isto é, imprimir seja na memória, seja no entendimento, aquilo que pode ser posto diante de nós como uma disciplina pronta e acabada. Para aprender, pois, a Filosofia, seria preciso que realmente já houvesse uma. Teria que ser possível exibir um livro e dizer: eis aqui sabedoria e discernimento fidedigno; procurai entendê-lo e assimilá-lo, sobre isso edificai no futuro, sereis então filósofos; até que me mostrem semelhante livro de Filosofia, ao qual eu possa recorrer como, por exemplo, ao Políbio, para elucidar um fato histórico, ou ao Euclides, para explicar uma proposição da Matemática, seja-me permitido dizer: que é um abuso de confiança da comunidade, em fez de ampliar a aptidão intelectual dos jovens que nos foram confiados e de formá-los para um discernimento próprio mais amadurecido no futuro, enganá-los com uma Filosofia pretensamente já pronta, que teria sido excogitada por outros em seu benefício, donde resulta um simulacro de ciência que só tem curso como moeda autêntica em certo lugar e entre certas pessoas, mas que é desacreditada em qualquer outra parte. O método peculiar de ensino na Filosofia é zetético, como lhe chamavam os Antigos (de zetein), isto é, investigante, e só se torna dogmático, isto é, decidido, no caso de uma razão mais exercitada em diferentes questões. Também o autor filosófico em que nos baseamos no ensino deve ser considerado, não como o modelo do juízo, mas apenas como o ensejo de julgarmos nós próprios sobre ele e até mesmo contra ele; e o método de refletir e concluir por conta própria é aquilo cujo domínio o aprendiz está a rigor buscando, o qual também é o único que lhe pode ser útil, de tal sorte que os discernimentos decididos que por ventura se tenham obtido ao mesmo tempo tem que ser considerados como conseqüências contingentes dele, conseqüências estas para cuja abundância ele só tem de plantar em si mesmo a raiz fecunda.

Se a isso compararmos o procedimento comum tão diverso dele, poderemos compreender várias outras coisas que de outro modo parecem estranhas aos nossos olhos. Como, por exemplo, por que não há nenhuma espécie de sapiência de ofício onde tantos mestres são encontrados como na Filosofia, e, ao passo que muitos dos que aprenderam História, Direito, Matemática etc se conformam com o fato de apesar disso ainda não terem aprendido o bastante para ensiná-las, por que por outro lado raramente se encontra alguém que não se imagine com toda seriedade capaz, além de sua ocupação restante, de ensinar Lógica, Moral e coisas semelhantes, caso quisesse se meter em tais miudezas. A razão é que, nessas ciências, há um padrão comum, nesta porém cada um tem o seu. Do mesmo modo, ver-se-á claramente que é muito pouco natural que a Filosofia seja um ganha-pão, na medida em que repugna ao seu caráter essencial acomodar-se à ilusão da demanda e à lei da moda, e que só a necessidade, cuja força ainda se faz sentir sobre a Filosofia, pode forçá-la a amoldar-se à forma do aplauso comum. (...)

sábado, 22 de outubro de 2011

Ética no ENEM?

Questão do ENEM 2011 pode ser considerada mal formulada:

"O brasileiro tem noção clara dos comportamentos éticos e morais adequados, mas vive sob o espectro da corrupção, revela pesquisa. Se o país fosse resultado dos padrões morais que as pessoas dizem aprovar, pareceria mais com a Escandinávia do que com Bruzundanga (corrompida nação fictícia de Lima Barreto)."
[FRAGA, P. Ninguém é inocente. Folha de S. Paulo, 4 out. 2009 (adaptado).]
O distanciamento entre “reconhecer” e “cumprir” efetivamente o que é moral constitui uma ambiguidade inerente ao humano, porque as normas morais são
A) decorrentes da vontade divina e, por esse motivo, utópicas.
B) parâmetros idealizados, cujo cumprimento é destituído de obrigação.
C) amplas e vão além da capacidade de o indivíduo conseguir cumpri-las integralmente.
D) criadas pelo homem, que concede a si mesmo a lei à qual deve se submeter.
E) cumpridas por aqueles que se dedicam inteiramente a observar as normas jurídicas.

***
Algumas resoluções divulgadas na rede indicam o item "B" como correto, porém admitem ambiguidades na questão, o que levou uma das resoluções a considerar a questão como mal formulada. Veja abaixo:

Resolução do Anglo, na página do Globo:
A norma moral, ao contrário da lei formal, não é de cumprimento obrigatório. Dessa forma, abre-se espaço para o distanciamento entre aquilo que é considerado correto e aquilo que efetivamente é praticado como correto.
Comentário: O caráter abstrato do enunciado e das alternativas permite diversas interpretações, provocando ambiguidade.
Na alternativa C, por exemplo, assume-se o caráter amplo das normas morais (o que pode ser considerado correto), seguindo-se a afirmação sobre a incapacidade humana de cumpri-las integralmente. Tal formulação é compatível tanto com a alternativa correta quanto com a afirmação do enunciado, segundo a qual há ambiguidades inerentes ao ser humano.
Da mesma forma, a alternativa D poderia ser considerada igualmente correta, considerando-se o termo “lei” como referência à lei moral.
Resposta: B

Fonte: http://g1.globo.com/vestibular-e-educacao/noticia/2011/10/confira-correcao-do-primeiro-dia-de-provas-do-enem-2011.html
ou
http://estaticog1.globo.com/2011/10/22/enem/anglo/Q02.pdf

Resolução do Etapa, na página do Globo:
Alternativa B
As normas morais são mandamento que, apesar de conterem em si mesmos a ideia de obrigação, não possuem poder coercitivo.

Fonte: http://g1.globo.com/vestibular-e-educacao/noticia/2011/10/confira-correcao-do-primeiro-dia-de-provas-do-enem-2011.html
ou
http://estaticog1.globo.com/2011/10/22/enem/etapa/2.gif

Resolução do site Educacional:
Resposta correta: B
A ética é o conjunto de valores e princípios que norteiam a conduta humana, enquanto a moralidade é o uso que se faz desses princípios, o comportamento, a prática de uma ética. Ambas são produtos da interação social ao mesmo tempo em que permitem a sociabilidade. São, portanto, criações humanas. Segundo a noção kantiana de imperativo categórico, as pessoas agem moralmente motivadas pela noção de dever, a qual consistiria no reconhecimento do que é racionalmente correto. Contudo, sendo produto de um cálculo racional, elas possuem um caráter idealizado, cuja obrigação em seu cumprimento, segundo Kant, está justamente nesse reconhecimento do que é o correto.

Fonte: http://www.educacional.com.br/enem/gabarito_enem2011.html

Resolução Colégios GPI, Pensi e Apogeu, na página do Globo:
Antes de qualquer análise, precisamos afirmar que esta questão não atenderá, provavelmente, às perspectivas do TRI. Tanto o aluno que possui maior grau de conhecimento e domínio das habilidades concernentes às Ciências Humanas quanto o aluno com menor especialidade nesta área terão extrema dificuldade em achar a resposta certa. Isso porque a opção “D” – que na falta de uma resposta mais qualificada acatamos como a opção correta – e a opção “B” são respostas verossímeis ao enunciado.
Nós acatamos a opção “D” como gabarito porque as normas morais, apesar de não terem – via de regra – o Campo Jurídico como veículo de imposição de suas diretrizes, são códigos sociais que não podem ser menosprezados pelos indivíduos que buscam ser aceitos pelos seus grupos de convívio.
A opção “B”, por sua vez, não pode ser invalidada porque nas sociedades complexas os códigos culturais, nos quais os preceitos morais são inseridos, não são universais e, portanto, não precisam ser necessariamente seguidos por todos os indivíduos de uma dada sociedade.

Fonte: http://www.colegio24horas.com.br/OGloboCorrecaoEnem2011/


Resolução do Colégio Objetivo:
Respostas: B / D
O texto publicado na Folha de S. Paulo intitula-se “Ninguém é inocente” e se refere à ambigüidade inerente à moralidade, indicando o evidente distanciamento entre “reconhecer” e “cumprir” a norma moral. Como a norma moral se insere na esfera da idealização e, não sendo lei – aí está a ambiguidade –, o seu cumprimento não é obrigatório, a alternativa b seria aceitável, especialmente se, em vez de “obrigação” (pois há a obrigação moral), se referisse a “obrigatoriedade”. A alternativa d também pode ser dada como correta, pois as normas morais são efetivamente criadas pelos homens e as leis são materializações de normas e valores éticos aceitos pelo consenso. Essa alternativa, porém, peca pela mesma imprecisão no que se refere à obrigatoriadade da injunção moral, pois não é claro se a expressão “deve se submeter” se refere à “lei” moral ou à lei propriamente dita.

Fonte: http://estaticog1.globo.com/2011/10/22/enem/NaturezaENEMprova1.pdf

***

E o gabarito oficial é... item D.
http://portal.inep.gov.br/

Com isso, confirma-se a suspeita de má elaboração da questão. Apesar do item D formular uma conceituação possível de "norma moral", essa conceituação não justifica aquilo que é requerido pelo enunciado, ou seja, por que "o distanciamento entre “reconhecer” e “cumprir” efetivamente o que é moral constitui uma ambiguidade inerente ao humano".

O item D diz que isso se dá porque as normas morais são "criadas pelo homem, que concede a si mesmo a lei à qual deve se submeter".
Se as normas morais são criadas pelo homem, isso não seria uma razão para que elas sejam reconhecidas e cumpridas?
Os itens B e C apontam, ainda que com algumas imprecisões, para o distanciamento entre o reconhecimento das normas morais e seu cumprimento, e no entanto são considerados errados.
No item B, as normas morais são consideradas "parâmetros idealizados cujo cumprimento é destituído de obrigação"; no item C, são "amplas e por isso vão além da capacidade do indivíduo de conseguir cumpri-las integralmente".

É preciso aprimorar a formulação de questões sobre temas filosóficos e conceituais, para evitar imprecisões e ambiguidades que prejudiquem os candidatos - e o ensino de filosofia nas escolas. De que adianta trabalhar o cuidado na leitura e análise de textos, se os exames de acesso ao ensino superior tratam essa análise com desleixo?

terça-feira, 4 de outubro de 2011

História da filosofia: centro ou referencial?

HISTÓRIA DA FILOSOFIA: CENTRO OU REFERENCIAL?
Franklin Leopoldo e Silva – USP
In: NETO, Henrique Nielsen (org.) O ensino de filosofia no 2º grau. São Paulo: SOFIA Editora SEAF, 1986, p.153-162.

1. Todas as disciplinas, no nível de seu ensino, se caracterizam por possuir um certo corpo de conceitos, mais ou menos cristalizados, formado ao longo do tempo pelas sucessivas contribuições de autores que se dedicaram ao estudo de um certo campo de questões em qualquer área do saber humano. O ensino não pode prescindir do recurso a este saber cristalizado, seja porque ele expressa verdades incontestáveis e descobertas fundamentais para a compreensão do estado de uma dada ciência, seja porque este corpo conceitual encerra instrumentos indispensáveis ao trabalho teórico no que concerne ao aperfeiçoamento e progresso da ciência. É evidente que, em muitas áreas do saber, o progresso rápido não permite que a cristalização conceitual acompanhe o ritmo das descobertas e das pesquisas efetivamente realizadas, criando assim uma diferença, às vezes bastante significativa, entre a ciência que se faz e a ciência que se ensina. Ainda assim, o recurso ao saber sedimentado é condição para o aprimoramento da ciência.

2. Na filosofia, este corpo conceitual mais ou menos unitário não existe, pelo menos na sua direção, que permite a avaliação do estado da ciência no momento em que se vai entrar nela pela via do aprendizado regular. A filosofia como saber é tão imanente à sua própria história que não podemos sequer chegar a determinar, com alguma esperança de rigor, uma direção formadora de um corpo teórico, que representasse a filosofia num determinado momento de seu desenvolvimento. Isto significa que o ensino de filosofia recorre à história da filosofia de maneira bem diferente do que se faz no ensino de ciências. Isto ocorre porque não existe, no mesmo sentido da ciência, um estado atual da filosofia, para a compreensão do qual fosse necessário recorrer à história, porém unicamente para mostrar uma direção determinada de progresso ou de desenvolvimento, que, com mais ou menos percalços epistemológicos, teria redundado numa situação a partir da qual fosse possível adentrar a ciência. Sendo assim, ou seja, não havendo uma situação atual da filosofia, o recurso à história ganha uma dimensão muito mais significativa: a filosofia é, de alguma maneira, a sua história, na medida em que os conceitos forjados numa determinada época, herdados e transfigurados pela posteridade, não podem ser entendidos como aquisições no curso de um desenvolvimento científico, mas sucessivas retomadas, que somente podem ser compreendidas se devidamente contextualizadas em cada sistema ou em cada autor.

3. A história da filosofia não pode, portanto, ser abordada numa perspectiva do progresso do saber. Isto significa, de uma lado, que a atualidade não detém nenhum privilégio, porque o que seria o estado atual da filosofia não é fruto de sucessivas correções de método e de perspectiva, que teriam redundado numa melhor abordagem do objeto, ou numa postura mais adequada frente à realidade. Significa, de outro lado, que os sistemas filosóficos são insuperáveis, se tomados cada um em si e na sua lógica interna. Isto traz duas conseqüências que se refletem diretamente no ensino de filosofia. A primeira é que nenhum sistema ou autor pode ser abordado como sendo diretamente tributário de algo que o antecedeu, pois as filosofias se caracterizam pelo recomeço e pela reposição das questões. Em segundo lugar, toda filosofia depende, em certo sentido, das que a precederam, uma vez que as reposições dos problemas e as transfigurações dos conceitos se fazem em relação a um determinado contexto de tradição, e nenhuma filosofia é inseparável de uma polêmica implícita que o filósofo mantém com os antecedentes, com os contemporâneos e até consigo próprio. Isto faz com que aquilo a que poderíamos chamar camada expressiva da filosofia, ou seja, a maneira como o filósofo expressa suas ideias e molda a originalidade do seu pensamento numa relação de confronto, de adequação ou de acordo com a cultura de sua época, tenha que ser levado em conta como forma de medir as distâncias que existem entre as filosofias e a história da filosofia.

4. A questão que se coloca quando transferimos estas questões para o nível do ensino da filosofia é aquela que queremos destacar aqui, analisando a alternativa CENTRO ou REFERENCIAL na utilização da história da filosofia. A filosofia, como qualquer outra disciplina, no nível do seu ensino, tem que se haver com o que poderíamos chamar, grosso modo, de métodos e resultados. Isto não quer dizer que o ensino de filosofia tenha que ser um inventário de soluções e dos procedimentos; tal coisa não teria sentido na medida em que não existem soluções e procedimentos que tenham triunfado e se cristalizado como mais ou menos definitivos. Mas existem, ao longo da história da filosofia, conceitos, atitudes e métodos que determinaram certas direções e, neste sentido, configuraram tendências, correntes e linhagens filosóficas, pelas quais, usualmente, se divide a história do pensamento. Por mais artificiais e problemáticas que possam ser tais divisões, elas representam um ponto de partida e uma ancoragem razoáveis do ponto de vista didático. Neste sentido são possíveis vários tipos de articulação temática ou por autores e, baseado nestas articulações, o professor pode traçar desde roteiros programáticos gerais até planos de aulas, tendo em vista fornecer uma visão histórica e/ou tematicamente articulada da filosofia.
Tendo em vista estes elementos, podem-se sugerir pelo menos duas formas de relacionar filosofia e história da filosofia.

I – HISTÓRIA DA FILOSOFIA COMO CENTRO

1. Tomar a história da filosofia como centro, no plano do ensino, significa focalizar os sistemas e autores na ordem histórica do seu desenvolvimento, visando familiarizar os alunos com os problemas e as formas de encaminhamento das soluções. A adoção desta perspectiva oferece, entre outras, as seguintes vantagens:

a) No plano do encadeamento e dos pré-requisitos. Pode facilitar a compreensão das questões na medida em que elas são colocadas no ritmo do próprio debate entre o filósofo e os seus antecessores. Talvez seja mais fácil levar o aluno à compreensão dos conceitos e das soluções, elaborados no âmbito de uma filosofia, quando se mostra de maneira explícita como os problemas e as soluções são suscitados em grande parte por oposição à maneira como os problemas e as soluções foram encaminhados no passado. Isto permite um certo encadeamento didático na visão da história da filosofia que é proporcionada ao aluno. Jamais este encadeamento deve ultrapassar o plano didático e estimular a crença de que as filosofias “saem” umas das outras por relações de oposição, de remanejamento ou de complementação.

b) No plano da progressão das questões. Isto nunca deve ser confundido com o progresso em filosofia. As sucessivas reposições das mesmas questões, no decorrer da história da filosofia, podem ajudar a compreensão das questão em si mesma e assim facilitar a interpretação das diferenças. Por exemplo, quando mostramos que as Ideias em Platão e as Categorias em Aristóteles são elementos concebidos para resolver o problema da fundamentação epistemológica e ontológica da relação de conhecimento, a sequência no estudo das duas soluções e a comparação das duas formas de posição do problema do conhecimento podem facilitar a compreensão de problemas relativos às garantias do conhecimento e identificação do verdadeiro. Da mesma forma, a comparação da subjetividade cartesiana com a noção de sujeito em Kant, através da diferenciação, em termos de estatuto e função, das ideias inatas e da estrutura formal do entendimento, pode facilitar a compreensão de como a modernidade coloca a questão das garantias do conhecimento.

2. É possível também levantar algumas questões quanto às dificuldades inerentes à adoção desta perspectiva:

a) Ordem cronológica? Esta questão é particularmente difícil. Não só temos que nos haver aqui com o problema da viabilidade prática e didática de um percurso exaustivo da história da filosofia, como também com a dificuldade, muito peculiar à filosofia, de proporcionar a alunos iniciantes uma compreensão razoável da origem da filosofia. Quanto ao primeiro ponto, a impossibilidade de conferir um rendimento mínimo ao aprendizado, quando se faz um percurso exaustivo e rigorosamente cronológico das filosofias, traz consigo o problema do recorte e da seleção. Que critérios devem ser usados para operar este ou aquele recorte? Como contornar o problema dos saltos cronológicos que qualquer recorte impõe? Como reencontrar as questões, quando se examina autores muito distanciados no tempo? Como resolver o problema de vincular diferentes autores a contextos culturais distanciados no tempo? Quanto ao segundo ponto, mais especificamente referido à história da filosofia grega, a questão que se coloca é a da necessidade de se abordar os autores mais antigos, em especial os pré-socráticos, com instrumental interpretativo moderno, que condiciona as diferentes formas de recuperar tentativamente o que teria sido a originalidade do pensamento grego nas suas origens. A abordagem do início da filosofia é talvez aquela que exige mais preparo do ponto de vista do professor e do aluno.

b) Distanciamento e isolamento relativos das questões? A inatualidade é um problema que não pode ser eludido. Chegar à conclusão de que os problemas da filosofia possuem como que duas camadas, uma em que o filósofo expressa o seu pensamento de acordo com as características básicas da visão do mundo de sua época e utilizando o instrumental cultural datado, e outra em que se pode ver, por trás desta camada expressiva, a manutenção das questões relativas ao fundamento da condição humana em seus vários aspectos, é algo que demanda tempo e familiaridade com a filosofia. Não se pode relegar este obstáculo ao mero nível psicológico, uma vez que o distanciamento das questões, ainda que aparente, propicia o desinteresse e o agravamento das dificuldades de compreensão. Também é de se notar que o percurso das filosofias na ordem histórica do seu desenvolvimento, se por um lado pode facilitar a compreensão das questões pela “vizinhança” dos autores e temas tratados, por outro lado, se esta vizinhança não for bem explicitada, poderá ocasionar uma visão absolutamente descontínua da filosofia, aquela que vê cada filósofo como recomeçando “absolutamente” a filosofia. Se por um lado é preciso resguardar a originalidade de cada posição, por outro, não é menos verdade que se trata de reposições e, neste sentido, de reformulações que são feitas no contexto de uma tradição e de uma contemporaneidade.

3. A questão da escolha entre a cronologia estrita e o recorte arbitrário talvez possa ser contornada através de uma opção a que poderíamos chamar de linhas de pensamento ou linhagem filosófica. Consiste em estabelecer agrupamentos de autores e sistemas interligados por uma dominante estabelecida a partir da predominância de um aspecto das filosofias consideradas. Suponhamos que se queira programar um curso em que predominaria o problema do conhecimento. Poderíamos agrupar filósofos que se vinculem entre si por alguma dominante em termos de concepção de conhecimento. Assim, por exemplo, numa linhagem constituída por Aristóteles, Santo Tomás de Aquino, Bacon, Locke e Hume, o critério do agrupamento seria a função da sensibilidade no conhecimento, ou a sensação como fundamento e princípio do conhecimento. É claro que este elemento comum aparece, num tal agrupamento de filósofos, como extremamente geral e abstrato. É claro, também, que não se trata de constituir correntes ou tendências filosóficas: no exemplo dado acima, o fato de haver dois filósofos chamados ordinariamente de “empiristas” não significa que estejamos constituindo a linhagem empirista ao agrupar, além desses autores, Aristóteles e Bacon num mesmo grupo. Mas é possível observar que, do ponto de vista do fundamento do conhecimento, como já se disse acima, tais autores possuem em comum pelo menos a característica de levar em conta a apreensão sensível do dado como parte integrante do processo gnoseológico, e através disso opõem-se a outros, para quem a percepção sensível não constitui elemento intrinsecamente válido do mesmo processo: Platão, Santo Agostinho, Descartes, Leibniz, por exemplo, que constituiriam assim uma outra linhagem caracterizada por outros elementos comuns, entre os quais o privilégio da interioridade (alma, idéia inata) como definidor do processo de conhecimento. Tampouco seria o caso de se falar aqui de tendência “idealista” do conhecimento, uma vez que os autores agrupados não podem, rigorosamente, receber todos, no mesmo sentido, esta denominação. A vantagem didática desta alternativa é, de um lado, a maior facilidade do trânsito interno entre os autores agrupados e, de outro, a possibilidade de vinculá-los mais ou menos a uma “matriz” tradicional, que seria, no primeiro exemplo, o realismo aristotélico e, no segundo, o realismo das ideias em Platão. Uma vez bem compreendidas estas “matrizes” e as diferenças que as separam, a vinculação histórica e temática dos autores agrupados talvez se faça de maneira mais compreensível, apoiada numa “ordem” de cunho estritamente didático, porém não inteiramente destituída de fundamento teórico.

II – HISTÓRIA DA FILOSOFIA COMO REFERENCIAL

1. Nesta perspectiva, a história da filosofia é tomada apenas como referencial ilustrativo de determinados temas que se deseja tratar. Os temas são tratados independentemente dos sistemas ou autores, levados em conta apenas na medida em que propiciam os indispensáveis referenciais para a discussão. É possível notar pelo menos duas vantagens deste tipo de abordagem:

a) Liberdade de escolha: evidentemente, não se estando preso a nenhuma ordem, nem a cronologia estrita, nem a uma linhagem estabelecida, nem a qualquer outro tipo de agrupamento, é possível jogar com os autores e sistemas articulando-os apenas em vista do tratamento de um determinado tema num dado momento.

b) Interesse e atualidade: o tratamento de temas fora de contextos específicos pode ocasionar maior interesse pela diversidade e contraposição de soluções, conferindo dinamismo à exposição ou à discussão. Por outro lado, os temas podem ser escolhidos em função da atualidade, o que é inegavelmente fator de interesse. Isto não quer dizer que se trataria em aula apenas de temas absolutamente vivos ou “em moda”, mas as aulas podem ser organizadas de tal maneira a se constituir uma “arqueologia da atualidade”, mostrando que o recurso ao passado filosófico auxilia a compreensão do presente, quando este recurso é utilizado em função do presente.

É possível notar também que esta opção envolve dificuldades, entre as quais:

a) Dificuldade de organização: Dada a ausência de uma ordem preestabelecida, incumbe ao professor organizar a ordem dos assuntos e a maneira pela qual a história da filosofia será utilizada. Isto envolve um amplo conhecimento da história da filosofia, a fim de que a aula, ou a discussão, possa ser encaminhada utilizando-se a história da filosofia de forma mais pertinente, teórica e didaticamente.

b) Especificidade e contexto. É óbvio que as diversas soluções que são formuladas ao longo da história da filosofia estão inseridas em contextos diversos. Não só existe o contexto do pensamento do autor, mormente quando se trata de autor sistemático, em que a perfeita compreensão das soluções dos problemas e dos conceitos forjados pressupõe uma familiaridade mínima com os pressupostos e com os procedimentos metódicos específicos, como também existe o contexto cultural no qual o autor está inserido e que determina em parte a sua linguagem, a aceitação e a rejeição de determinados parâmetros de pensamento. Nada disto pode ser tratado de forma suficiente quando tomamos os autores e os sistemas simplesmente como ilustração de determinados temas. Pense-se, por exemplo, nas dificuldades envolvidas na discussão de um tema como a subjetividade na filosofia moderna: as diferenças na concepção de sujeito em Descartes e Kant, para não citar outros, configuram obstáculos difíceis de superar, se queremos expor com clareza a natureza e a função da subjetividade, sem nos prendermos a este ou aquele filósofo moderno.

2. Como se vê, a maior flexibilidade deste tipo de abordagem acarreta, em contrapartida, um esforço bem maior no que diz respeito à ordenação dos temas, a fim de que a grande mobilidade dentro da história da filosofia possa contribuir para o rendimento da aula ou da discussão, pois a discussão de temas filosóficos sem o recurso à história da filosofia não resulta em aprendizado e envolve o risco de se permanecer no “livre pensar”.

III – UTILIZAÇÃO DO MATERIAL DIDÁTICO

1. Em ambas as perspectivas apresentadas aqui a utilização do material bibliográfico deve prender-se a dois critérios: contextualização e precisão.

a) Contextualização. Ela refere-se à informação necessária para inserir o assunto tratado num quadro maior. No caso de adotar-se a perspectiva I (história da filosofia como centro), esta contextualização pode ser feita por meio de livros de História da Filosofia (Bréhier, Châtelet). A leitura ao menos do capítulo ou dos capítulos, que configuram o quadro histórico em que se insere o autor tratado, contribuiu para dar uma visão preliminar e ampla das coordenadas que permitiriam uma compreensão mais abrangente da questão tratada.

b) Precisão. Aqui trata-se da difícil tarefa da leitura dos próprios textos filosóficos. Ninguém ignora as imensas dificuldades envolvidas nessas leituras, o mais das vezes áridas e de difícil compreensão, exigindo em muitas ocasiões um domínio razoável de terminologia específica. Apesar de tudo isto, não há como fugir à necessidade dessas leituras, se se quiser proporcionar ao aluno uma visão razoavelmente precisa do pensamento dos autores tratados e dos diferentes estilos de reflexão, coisas que só de forma um tanto abstrata são apreendidas através da leitura de manuais de história da filosofia. Cabe ao professor recortar os textos de maneira a proporcionar uma compreensão mínima do assunto tratado, balanceando este recorte com os critérios da viabilidade didática e da importância estratégica dos textos.

2. No caso de adotar-se a perspectiva II (história da filosofia como referência), o trabalho de inserção contextual poderia ser feito com Manuais de Filosofia organizados por temas, e o trabalho de precisão seria feito através da leitura de textos de autores, tal como na perspectiva I.

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Conhece-te? [2]

Nietzsche. Schopenhauer educador, parte 1. [in: NIETZSCHE, F. Escritos sobre educação. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2003, p. 138-142. Tradução: Noéli Correia de Melo Sobrinho] Ao ser perguntado que natureza encontrou nos homens em todos os lugares, o viajante que viu muitos países e povos e vários continentes respondeu: eles têm uma propensão à preguiça. Alguns acharão que ele teria respondido com mais justeza e razão: todos são timoratos. Eles se escondem atrás de costumes e opiniões. No fundo, todo homem sabe muito bem que não se vive no mundo senão uma vez, na condição de único, e que nenhum acaso, por mais estranho que seja, combinará pela segunda vez uma multiplicidade tão diversa neste todo único que se é: ele o sabe, mas esconde isso como se tivesse um remorso na consciência – por quê? Por medo do próximo que exige esta convenção e nela se oculta. Mas o que obriga o indivíduo a temer o seu vizinho, a pensar e agir como animal de rebanho e não se alegrar consigo próprio? Em alguns muito raros, talvez o pudor. Mas na maioria dos indivíduos, é a indolência, o comodismo, em suma, esta propensão à preguiça da qual falava o viajante. Ele tem razão: os homens são ainda mais preguiçosos do que timoratos e temem antes de mais nada os aborrecimentos que lhes seriam impostos por uma honestidade e uma nudez absolutas. Somente os artistas detestam este andar negligente, com passos contados, com modos emprestados e opiniões postiças, e revelam o segredo, a má-consciência de cada um, o princípio segundo o qual todo homem é um milagre irrepetível; somente eles se atrevem nos mostrar o homem tal como ele propriamente é e tal como é único e original em cada movimento de seus músculos, e mais ainda, que ele é belo e digno de consideração segundo a estrita coerência da sua unicidade, que ele é novo e incrível como todas as obras da natureza e de maneira nenhuma tedioso. Quando o grande pensador despreza os homens, é a preguiça destes que ele despreza, pois é ela que dá a eles o comportamento indiferente das mercadorias fabricadas em série, indignas de contato e de ensino. O homem que não quer pertencer à massa só precisa deixar de ser indulgente para consigo mesmo; que ele siga a sua consciência que lhe grita: “Sê tu mesmo! Tu não és isto que agora fazes, pensas e desejas”.

Toda alma jovem vive este apelo dia e noite, e estremece; pois ela pressente a medida de felicidade que lhe é destinada de toda a eternidade, quando pensa na sua verdadeira emancipação: felicidade a qual de nenhum modo alcançará de maneira duradoura, enquanto permanecer nas cadeias da opinião corrente e do medo. E como pode ser desesperada e desprovida de sentido a vida sem esta libertação! Não existe na natureza criatura mais sinistra e mais repugnante do que o homem que foi despojado do seu próprio gênio e que se extravia agora a torto e a direito, em todas as direções. Afinal, não se tem mesmo o direito de atacar um tal homem, pois ele existe somente fora do seu eixo, como fantasia frouxa tingida e gasta, como um espectro sarapintado que não pode inspirar medo e menos ainda compaixão. E mesmo que se diga, com razão, do preguiçoso que ele mata o tempo, será preciso também ocupar-se seriamente, de uma vez para sempre, com matar o tempo de uma época que coloca sua salvação nas opiniões recebidas, quer dizer, nos vícios privados; em outras palavras, é preciso apagar este tempo da história da autêntica emancipação da vida. Qual não seria a aversão das gerações futuras, quando tivessem de se ocupar com a herança deste período, em que não são os homens vigorosos que governam, mas os arremedos de homem, os intérpretes da opinião. Esta é a razão por que o nosso século passará talvez, para uma longínqua posteridade, como o momento mais obscuro e desconhecido, como o período mais inumano da história. Quando percorro as novas ruas das nossas cidades, me ponho a pensar que, no espaço de um século, nada restará de pé destas casas horrorosas que se construiu para si a raça dos conformistas da opinião, e quando então as opiniões destes construtores serão destruídas elas também. Que esperança, pelo contrário, deveria animar todos aqueles que não se sentem cidadãos deste tempo, pois se o fossem, contribuiriam para matar sua época e soçobrar com ela – embora quisessem somente despertá-la para a vida, a fim de viver eles próprios nesta mesma vida.

Mas, ainda que o futuro não nos deixasse qualquer esperança, a singularidade da nossa existência neste momento preciso é o que nos encorajaria mais fortemente a viver segundo a nossa própria medida: quero falar sobre este fato inexplicável de vivermos justamente hoje, quando dispomos da extensão infinita do tempo para nascer, quando não possuímos senão o curto lapso de tempo de um hoje e quando é preciso mostrar nele, por que razões e para que fins, aparecemos exatamente agora. Temos de assumir diante de nós mesmos a responsabilidade por nossa existência, por conseguinte, queremos agir como os verdadeiros timoneiros desta vida e não permitir que nossa existência pareça uma contingência privada de pensamento. Esta existência quer que a abordemos com ousadia e também com temeridade, até porque, no melhor ou no pior dos casos, sempre a perderemos. Por que se agarrar a este pedaço de terra, a esta profissão, por que dar ouvidos aos propósitos do vizinho? É igualmente provinciano jurar obediência a concepções que, em centenas de outros lugares, já não obrigam mais. O Ocidente e o Oriente são linhas imaginárias que alguém traça com um giz diante dos nossos olhos, para enganar a nossa pusilanimidade. Vou tentar alcançar a liberdade, diz para si a jovem alma. Não obstante, seria ela disso impedida pelo fato de o acaso querer que duas nações se odeiem e entrem em guerra, ou pelo fato de um mar separar dois continentes, ou pelo fato ainda de se ensinar em torno dela uma religião que já não existia há milhares de anos? Tu não és propriamente nada disso, diz ela para si. Ninguém pode construir no teu lugar a ponte que te seria preciso tu mesmo transpor no fluxo da vida – ninguém, exceto tu. Certamente, existem as veredas e as pontes e os semideuses inumeráveis que se oferecerão para te levar para o outro lado do rio, mas somente na medida em que te vendesses inteiramente: tu te colocarias como penhor e te perderias. Há no mundo um único caminho sobre o qual ninguém, exceto tu, poderia trilhar. Para onde leva ele? Não perguntes nada, deves seguir este caminho. Quem foi então que anunciou este princípio: “Um homem nunca se eleva mais alto senão quando desconhece para onde seu caminho poderia levá-lo?”

Mas como encontrar a nós mesmos? Como o homem pode se conhecer? Trata-se de algo obscuro e velado; e se a lebre tem sete peles, o homem pode bem se despojar setenta vezes das sete peles, mas nem assim poderia dizer: “Ah! Por fim, eis o que tu és verdadeiramente, não há mais o invólucro”. É também uma empresa penosa e perigosa cavar assim em si mesmo e descer à força, pelo caminho mais curto, aos poços do próprio ser. Com que facilidade, então, ele se arrisca a se ferir, tão gravemente que nenhum médico poderia curá-lo. E, além disso, por que seria isto necessário, se tudo carrega consigo o testemunho daquilo que somos, as nossas amizades e os nossos ódios, o nosso olhar e o estreitar da nossa mão, a nossa memória e o nosso esquecimento, os nossos livros e os traços da nossa pena? Mas este é um meio de determinar o interrogatório essencial. Que a jovem alma se volte retrospectivamente para sua vida e faça a seguinte pergunta: “O que tu verdadeiramente amaste até agora, que coisas te atraíram, pelo que tu te sentiste dominado e ao mesmo tempo totalmente cumulado? Faz passar novamente sob teus olhos a série inteira destes objetos venerados, e talvez eles te revelem, por sua natureza e por sua sucessão, uma lei, a lei fundamental do teu verdadeiro eu. Compare estes objetos, observe como eles se completam, crescem, se superam, se transfiguram mutuamente, como formam uma escada graduada através da qual até agora te elevaste até o teu eu. Pois tua essência verdadeira não está oculta no fundo de ti, mas colocada infinitamente acima de ti, ou pelo menos daquilo que tomas comumente como sendo teu eu. Teus verdadeiros educadores, aqueles que te formarão, te revelam o que são verdadeiramente o sentido original e a substância fundamental da tua essência, algo que resiste absolutamente a qualquer educação e a qualquer formação, qualquer coisa em todo caso de difícil acesso, como um feixe compacto e rígido: teus educadores não podem ser outra coisa senão teus libertadores”. E eis aí o segredo de toda formação, ela não procura os membros artificiais, os narizes de cera, os olhos de cristal grosso; muito pelo contrário, o que nos poderia atribuir esses dons seria somente uma imagem degenerada desta formação. Ao contrário, aquela outra educação é somente libertação, extirpação de todas as ervas daninhas, dos dejetos, dos vermes que querem atacar as tenras sementes das plantas, ela é efusão de luz e calor, o murmúrio amistoso da chuva noturna; ela é imitação e adoração da natureza no que esta tem de maternal e misericordioso, ela consuma a natureza quando, conjurando os acessos impiedosos e cruéis, os faz levar a bom termo, quando lança o véu sobre suas intenções de madrasta e as manifestações de sua triste cegueira.

Certamente, existem outros meios de se encontrar a si mesmo, de escapar do aturdimento no qual nos colocamos habitualmente, como envoltos numa nuvem sombria, mas não conheço coisa melhor do que lembrar dos nossos mestres e educadores. É por isso que vou lembrar hoje o nome do único professor, o único mestre de quem eu posso me orgulhar, Arthur Schopenhauer, para só me lembrar de outros mais tarde.

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

conhece-te?


Questão de vestibular da UFMG
Leia estes trechos:

TRECHO 1
a) O Projeto Genoma [...] é a resposta final ao mandamento: Conhece-te a ti mesmo.
W. Gilbert, geneticista, citado por SCHATTUCK, Roger. Conhecimento proibido. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p.173.
b) Se eu tivesse um computador adequado e a seqüência completa do DNA, poderia calcular o organismo de um ser vivo, isto é, sua anatomia, sua fisiologia e seu comportamento.
W. Gilbert, geneticista, citado por JUNGUES, José Roque. Bioética. São Leopoldo: Unisinos, 1999. p. 234. (Texto adaptado)

TRECHO 2
Num certo sentido, é necessário, como disse o oráculo grego, conhecer-se a si mesmo. Essa é a primeira meta do conhecimento. Mas reconhecer que a alma do homem é incognoscível é o objetivo supremo da sabedoria. O mistério final somos nós mesmos. Quando tivermos conseguido pesar o sol na balança e medido os degraus da lua e desenhado o mapa dos sete céus, estrela por estrela, ainda restaremos nós. Quem poderá calcular a órbita da própria alma?
WILDE, Oscar. De profundis.

IDENTIFIQUE e ANALISE as duas posições expressas nesses trechos, com relação à possibilidade de autoconhecimento por parte do ser humano.

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Não é um bom tema para fazer uma redação?

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Platão e a Alma


Platão: Mito da Alma como uma Parelha Alada.
[Platão. Fedro. Tradução: Carlos Alberto Nunes. Universidade Federal do Pará, 1975]

[Fedro, 245c-250c]

[A Imortalidade da Alma]
A alma é toda imortal, pois o que move a si mesmo é imortal; porém o que movimenta outra coisa ou é movido por outra coisa, deixa de viver quando cessa o movimento. Somente o ser que a si mesmo se movimenta, pelo fato de nunca abandonar-se, é que não pára de mover-se, como é fonte e princípio de movimento para tudo o que recebe movimento do de fora. Só o princípio não é gerado; muito ao revés disso: dele, necessariamente, é que se origina tudo que nasce, ao passo que ele mesmo não provém de nada, porque se se originasse de alguma coisa, não seria princípio. Ora, uma vez que nunca nasceu, terá também de ser indestrutível, pois se o princípio viesse a perecer, nem ele poderia renascer de alguma coisa, nem nada teria nascimento nele, a ser verdade que tudo terá de provir de algum princípio. Surge daí, ser princípio de movimento o que se movimenta a si mesmo; donde se colhe, que ele não pode começar a existir nem vir a destruir-se, sob pena de cair e parar todo o céu e toda a geração, que nunca mais encontrariam outra fonte de vida e de movimento. Demonstrada, assim, a imortalidade do que se movimenta por si mesmo, não terá de que envergonhar-se quem afirmar que nisso consiste a essência e a própria idéia da alma. Todo corpo que recebe de fora o movimento é inanimado, sendo, pelo contrário, animado o que tira de si mesmo, de dentro, o movimento, pois nisso, precisamente, consiste a natureza da alma. Ora, se as coisas se passam, realmente, desse modo, se a alma é o que a si mesmo se movimenta, necessariamente a alma não pode ser gerada e é imortal. A respeito da imortalidade, é quanto basta.

Sobre sua natureza, teremos de dizer o seguinte: o que, realmente, ela seja, é assunto de todo o ponto divino, que exigiria largas explanações; mas, irá bem uma imagem em nosso linguajar humano e de recursos limitados. Deste modo é que devemos expressar-nos: assemelha-se a uma força natural composta de uma parelha de cavalos alados e de seu cocheiro. Os cavalos dos deuses e os respectivos aurigas são bons e de elementos nobres, porém os dos outros seres são compostos. Inicialmente, no nosso caso o cocheiro dirige uma parelha desigual; depois, um dos cavalos da parelha é belo e nobre e oriundo de raça também nobre, enquanto o outro é o contrário disso, tanto em si mesmo como por sua origem. Essa a razão de ser entre nós tarefa dificílima a direção das rédeas. De onde vem ser determinado mortal e imortal o que tem vida, é o que procurarei explicar. Sempre é a alma toda que dirige o que não tem alma, e percorrendo a totalidade do universo, assume formas diferentes, de acordo com os lugares. Quando é perfeita e alada, caminha nas alturas e governa o mundo em universal. Vindo a perder as asas, é arrastada até bater nalguma coisa sólida, onde fixa a moradia e se apossa de um corpo de terra, que pareça mover-se por si mesmo, em virtude da força própria da alma. Essa composição tem o nome de animal, a alma e o corpo ajustados entre si, e é designada como mortal. A imortal não pode ser compreendida racionalmente; porém, dado que não vejamos nem compreendamos cabalmente nenhuma divindade, imaginamo-la como um ser imortal dotado de alma e dotado de corpo, unidos naturalmente por toda a eternidade. Mas, tudo isso será como Deus quiser e permitir que nos expressemos. Vejamos agora a causa de caírem as asas, de virem as almas a perdê-las. Passa-se mais ou menos o seguinte.

A virtude natural da asa consiste em levar o que é pesado para as alturas onde habita a geração dos deuses, sendo ela, de tudo o que se relaciona com o corpo, o que em mais alto grau participa do divino. Ora, o divino é belo, sábio, bom e tudo o mais do mesmo gênero, pois é isso o que alimenta e faz crescer as asas da alma; ao passo que o feio, o mal e tudo o mais que se opõe àquelas qualidades a fazem murchar e perecer. Zeus, o guia supremo, abre a marcha no céu com o seu carro alado, ordenando tudo e de tudo cuidando, seguido por um exército de deuses e demônios, repartidos em onze grupos. Só fica Héstia na morada dos deuses; os demais, que integram o número dos deuses dominadores, seguem à frente do grupo para que foram designados. Infinitos e abençoados são os espetáculos dessas evoluções do interior do céu, executadas pela feliz raça dos deuses, cada um na sua esfera particular e acompanhados dos que querem e podem sempre segui-los, pois a Inveja foi excluída desde logo do coro divino. Sempre que vão banquetear-se nos festins, galgam a escarpa da abóbada celeste; nessas ocasiões as parelhas dos deuses, por serem equilibradas e de fácil direção, sobem depressa, enquanto as outras só o fazem com dificuldade, pois o corcel de raça ordinária, quando não foi devidamente educado pelo auriga, em vista de seu peso puxa o carro para a terra. É a mais árdua provação com que a alma se defronta. As almas denominadas imortais, uma vez alcançado o vértice, passam para o outro lado e se postam, assim, no dorso da abóbada celeste, e, uma vez ali chegadas, a revolução do céu as arrasta no seu curso, contemplando elas as realidades que se encontram para além do céu.

A região supraceleste nunca foi cantada por nenhum poeta cá de baixo, nem nunca poderá ser bastante enaltecida. O que há é o seguinte, pois é preciso coragem para dizer a verdade. A essência que realmente existe e é sem corpo e sem forma, impalpável e só pode ser percebida pelo guia da alma, o intelecto, sobre ser o objeto do verdadeiro conhecimento, tem aqui a sua sede. Ora, o pensamento de Deus, nutrido exclusivamente de inteligência e de conhecimento puro, tal como se dá, aliás, com toda alma que se preocupa com receber o conhecimento que lhe convém, alegra-se quando chega o tempo de voltar a perceber a realidade, e se nutre com delícias da contemplação da verdade, até que o movimento circular a traga de novo para o ponto de partida. No decurso dessa ampla revolução contempla a justiça em si mesma, contempla a temperança, o conhecimento, não o conhecimento passível de crescimento e que difere de acordo com o objeto com que se relaciona e a que em nossa curta existência damos a denominação de seres, mas o conhecimento do que verdadeiramente existe. Depois de haver contemplado as outras realidades verdadeiras e delas se alimentado, mergulha a alma de novo no interior do céu e retorna para sua morada. Lá chegando, o cocheiro leva os cavalos para a manjedoura, lança-lhes Ambrósia e depois dá-lhes a beber néctar.

Assim é a vida dos deuses. Das outras almas, as dos homens, a que melhor se esforça por acompanhar os deuses e com eles parecer-se, eleva a cabeça do cocheiro para o outro lado do céu e se deixa arrastar pelo movimento circular; porém, perturbada pelos cavalos, mal pode contemplar as essências. A segunda melhor, ora se ergue ora se abaixa, mas, sempre atarefada com os cavalos, percebe umas tantas essências e deixa passar outras. As demais almas também desejam ardentemente alcançar a parte superior e se afanam nesse sentido; porém, não sendo suficientemente fortes, caem para a parte inferior da abóbada, amontoam-se, machucam-se, procurando cada uma passar à frente da vizinha. A confusão é enorme; há luta e o suor escorre em bagas e, por falta de perícia dos cocheiros, muitas almas ficam estropiadas e chegam a perder parte das asas. Depois desse trabalho insano, todas voltam sem terem conseguido contemplar a realidade, e, uma vez dali afastadas, alimentam-se apenas com a Opinião.. a razão de tamanho empenho de contemplar a Planície da Verdade, está no fato de nascer justamente naquele prado o alimento adequado para a porção mais nobre da alma e de nutrir-se com isso a natureza das asas que confere à alma mais leveza. A lei de Adrasteia é a seguinte: toda alma que no séqüito de algum deus consegue contemplar algo das verdadeiras realidades, fica livre de padecimentos até à revolução seguinte, e se sempre conseguir isso mesmo, nunca mais virá a sofrer coisa nenhuma. Quando, ao revés disso, por incapacidade de acompanhar os deuses, nada percebe das essências e, pelo efeito de alguma desgraça intercorrente, torna-se pesada, em decorrência mesmo de tal fato perde as asas e cai no chão: há uma lei que a proíbem entrar no corpo de algum animal logo na geração seguinte, como também determina que a que teve visão mais rica penetre no germe de um homem destinado a ser amigo da sabedoria e da beleza ou cultor das Musas e do amor; a alma colocada em segundo lugar dará um rei legítimo, potentado ou guerreiro de prol; a terceira classificada, tornar-se-á político, ecônomo ou comerciante; a quarta, um ginasta amigo dos exercícios físicos ou algum entendido na cura das doenças do corpo; a quinta terá vida de adivinho ou de iniciado nos mistérios; a sexta será poeta ou alguém afeito às artes da imitação; a sétima, artista ou lavrador; a oitava, sofista ou demagogo, e a nona, algum tirano. Em todos esses estados,os que viveram de modo justo alcançam melhor sorte; quem praticou injustiça, destino cem vezes pior.

Cada alma não retorna ao ponto de partida senão depois de decorridos dez mil anos, nem recupera as asas antes desse prazo, com exceção de quem se dedicou sem dolo à filosofia e dos que votaram aos jovens afeição verdadeiramente, filosófica. Nesses casos, no terceiro período de mil anos, se três vezes a fio elas escolherem o mesmo gênero de vida, voltam a adquirir asas e dali se afastam no fim de três mil anos. As demais, escoado o termo da primeira existência, são submetidas a julgamento, depois do qual umas tantas descem para prisões correcionais embaixo da terra, a fim de cumprirem a pena cominada, enquanto outras, aligeiradas pela sentença, são conduzidas para determinado lugar do céu, onde levam uma vida mais digna do que a anteriormente vivida sob a forma humana. Decorridos mil anos, tanto estas como aquelas terão de submeter-se à sorte para escolherem a segunda vida, de acordo com seu próprio alvedrio. Então, uma alma de homem poderá entrar no corpo de algum animal, e o inverso: entrar no homem a alma de animal que já tivesse sido homem, pois jamais adquirirá essa forma a alma que em nenhum tempo alcançou a contemplação da Verdade. Realmente, a condição humana implica a faculdade de compreender o que denominamos idéia, isto é, ser capaz de partir da multiplicidade de sensações para alcançar a unidade mediante a reflexão. É a reminiscência do que nossa alma viu quando andava na companhia da divindade e, desdenhando tudo o a que atribuímos realidade na presente existência, alçava a vista para o verdadeiro ser. Daí, justificar-se só ter asas o pensamento do filósofo, porque este se aplica com todo o empenho, por meio da reminiscência, às coisas que asseguram ao próprio deus a sua divindade. Só atinge a perfeição do indivíduo que sabe valer-se da reminiscência e foi devidamente iniciado mistérios. Indiferente às atividades humanas e ocupado só com as coisas divinas, geralmente passa por louco, já que o vulgo não percebe que ele é inspirado.

A isto tendia todo o discurso relativo à quarta forma de delírio. Quando, à vista da beleza terrena e, despertada a lembrança da verdadeira beleza, a alma readquire asas e, novamente alada, debalde tenta voar, à maneira dos pássaros dirige o olhar para o céu, sem atentar absolutamente nas coisas cá de baixo, do que lhe vem ser acoimada de maníaca. Porém o que eu digo é que essa é a melhor modalidade de possessão, a de mais nobre origem, tanto em quem se manifesta como em quem dele a recebeu. O indivíduo atacado de semelhante delírio, sempre que apaixonado das coisas belas, é denominado amante. Conforme disse há pouco, toda alma de homem já contemplou naturalmente a verdadeira realidade, sem o que não teria nunca adquirido essa forma; porém não o é igualmente para todas, à vista das coisas terrenas, recordar-se das coisas celestes, o que se dá tanto com as que as perceberam de corrida como com as que tiveram a infelicidade de cometer alguma injustiça por influência de más companhias e de esquecer os mistérios sagrados contemplados naquela ocasião. Assim, são bem poucas as que conservam a lembrança do que viram. Sempre que essas poucas percebem alguma imagem das coisas lá do alto, ficam tomadas de entusiasmo e perdem o domínio de si mesmas. Porém não sabem o que se passa com elas, por carecerem de percepção bastante clara, pois em relação à justiça, à temperança e tudo o mais que a alma tem em grande estima, as imagens terrenas são totalmente privadas de brilho; com órgãos turvos e, por isso mesmo, com assaz dificuldade, é que as poucas pessoas que se aproximam das imagens conseguem reconhecer nelas o gênero do modelo original. Porém a Beleza era muito fácil de ver por causa do seu brilho peculiar quando, no séqüito de Zeus, tomando parte no coro dos bem-aventurados e os demais no de outra divindade, gozávamos do espetáculo dessa visão admirável e, iniciados nesse mistério que, com toda a justiça, pode ser denominado sacratíssimo, e que celebrávamos na plenitude da perfeição e livres dos males que nos alcançam no futuro, fomos admitidos a contemplar sob a luz mais pura aparições perfeitas, simples, imutáveis, puros também e libertos deste cárcere de morte que com o nome de corpo carregamos conosco e no qual estamos aprisionados como a ostra em sua casca.

domingo, 28 de agosto de 2011

Tempo Livre


Theodor Adorno

A questão do tempo livre: o que as pessoas fazem com ele, que chances eventualmente oferece o seu desenvolvimento, não pode ser formulada em generalidade abstrata. A expressão, de origem recente, aliás – antes se dizia ócio, e este era um privilégio de uma vida folgada, e portanto, algo qualitativamente distinto e muito mais grato, mesmo desde o ponto de vista do conteúdo -, aponta uma diferença específica que o distingue do tempo não-livre, aquele que é preenchido pelo trabalho e, poderíamos acrescentar, na verdade, determinado desde fora. O tempo livre é acorrentado ao seu oposto. Esta oposição, a relação em que ela se apresenta, imprime-lhe traços essenciais. Além do mais, muito mais fundamentalmente, o tempo livre dependerá da situação geral da sociedade. Mas esta, agora como antes mantém as pessoas sob um fascínio. Nem em seu trabalho, nem em sua consciência dispõem de si mesmas com real liberdade. Até mesmo aquelas sociologias conciliadoras que utilizam o conceito de papéis como chave reconhecem isso, enquanto, como sugerem esse conceito de papéis tomado do teatro, a existência que a sociedade impõe às pessoas não se identifica com o que as pessoas são ou poderiam ser em mesmas. Decerto, não se pode traçar uma divisão tão simples entre as pessoas em si e seus assim chamados papéis sociais. Estes penetram profundamente nas próprias características das pessoas, em geral sua constituição íntima. Numa época de integração social sem precedentes, fica difícil estabelecer, de forma geral, o que resta nas pessoas, além do determinado pelas funções. Isto pesa muito sobre a questão do tempo livre. Não significa menos do que, mesmo onde o encantamento se atenua e as pessoas estão ao menos subjetivamente convictas de que agem por vontade própria, essa vontade é modelada por aquilo de que desejam estar livres fora do horário de trabalho. A indagação adequada ao fenômeno do tempo seria, hoje, porventura, esta: “Que ocorre com ele com o aumento da produtividade no trabalho, mas persistindo as condições de não-liberdade, isto é, sob relações de produção em que as pessoas nascem inseridas e que, hoje como antes, lhes prescrevem as regras de sua existência?” Já agora, o tempo livre aumentou sobremaneira; graças às invenções ainda não totalmente utilizadas - em termos econômicos – nos campos da energia atômica e da automação, poderá aumentar cada vez mais. Se quisesse responder à questão sem asserções ideológicas, tornar-se-ia imperiosa a suspeita de que o tempo livre tende em direção contrária à de seu próprio conceito, tornando-se paródia deste. Nele se prolonga a não-liberdade, tão desconhecida da maioria das pessoas não-livres como a sua não-liberdade, em si mesma.

Para esclarecer o problema, gostaria de fazer uso de uma pequena experiência pessoal. Em entrevistas e levantamento de dados, sempre se é questionado sobre o seu ‘hobby’. Quando as revistas ilustradas informam a respeito de algum figurão da indústria cultural, falar dos quais é, por sua vez, a ocupação principal da indústria cultural, poucas vezes perdem o ensejo de relatar algo mais ou menos íntimo sobre os ‘hobbies’ dos mesmos. Quando me toca essa questão, fico apavorado: Eu não tenho qualquer ‘hobby’. Não que eu seja uma besta de trabalho que não sabe fazer consigo mesma nada além de esforçar-se e fazer aquilo que se deve fazer. Mas aquilo com o que me ocupo fora da minha profissão oficial é, para mim, sem exceção, tão sério que me sentiria chocado com a idéia de que se tratasse de ‘hobbies’, portanto ocupações nas quais me jogaria absurdamente só para matar o tempo, se minha experiência contra todo tipo de manifestações de barbárie – que se tomaram como que coisas naturais – não me tivesse endurecido. Compor música, escutar música, ler concentradamente, são momentos integrais da minha existência, a palavra ‘hobby’ seria escárnio em relação à elas. Inversamente, meu trabalho, a produção filosófica e sociológica e o ensino na universidade, têm-me sido tão gratos até o momento que não conseguiria considerá-los como opostos ao tempo livre, como a habitualmente cortante divisão requer das pessoas. Sem dúvida, estou consciente de que estou falando como privilegiado, com a cota de casualidade e de culpa; como alguém que teve a rara chance de escolher e organizar seu trabalho essencialmente segundo as próprias intenções. Este aspecto conta, não em último lugar, para o fato de que aquilo que faço fora do horário de trabalho não se encontre em estrita oposição em relação a este. Caso um dia o tempo livre se transformasse efetivamente naquela situação em que aquilo que antes fora privilégio agora se tornasse benefício de todos – e algo disso alcançou a sociedade burguesa, em comparação com a feudal -, eu imaginaria este tempo livre segundo o modelo que observei em mim mesmo, embora esse modelo, em circunstâncias diferentes, ficasse por sua vez, modificado.

Quando se aceita como verdadeiro o pensamento de Marx, de que na sociedade burguesa a força de trabalho tornou-se mercadoria e, por isso, o trabalho foi coisificado, então a palavra ‘hobby’ conduz ao paradoxo de que aquele estado, que se entende como o contrário de coisificação, como reserva de vida imediata em um sistema total completamente mediado, é, por sua vez, coisificado da mesma maneira que a rígida delimitação entre trabalho e tempo livre. Neste prolongam-se as formas de vida social organizada segundo o regime do lucro.

A própria ironia da expressão negócios do tempo livre [Freizeitgeschäft] está tão profundamente esquecida quanto se leva a sério o ‘show business’. É bem conhecido, e nem por isso menos verdadeiro, que os fenômenos específicos do tempo livre como o turismo e o ‘camping’ são acionados e organizados em função do lucro. Simultaneamente, a distinção entre trabalho e tempo livre foi incutida como norma à consciência e inconsciência das pessoas. Como, segundo a moral do trabalho vigente, o tempo em que se está livre do trabalho tem por função restaurar a força de trabalho, o tempo livre do trabalho – precisamente porque é um apêndice do trabalho – vem a ser separado deste com zelo puritano. Aqui nos deparamos com um esquema de conduta do caráter burguês. Por um lado, deve-se estar concentrado no trabalho, não se distrair, não cometer disparates; sobre essa base, repousou outrora o trabalho assalariado, e suas normas foram interiorizadas. Por outro lado, deve o tempo livre, provavelmente para que depois se possa trabalhar melhor, não lembrar em nada o trabalho. Esta é a razão da imbecilidade de muitas ocupações do tempo livre. Por baixo do pano, porém, são introduzidas, de contrabando, formas de comportamento próprias do trabalho, o qual não dá folga às pessoas. Nos boletins escolares, havia outrora notas para a atenção. Isso correspondia ao cuidado, talvez subjetivamente bem intencionado, dos pais de que as crianças não se esforçassem demais no tempo livre: não ler demais, não deixar a luz acesa por muito tempo à noite. Secretamente, os pais farejavam por trás disso uma rebeldia do espírito, ou também, uma insistência no prazer, a qual é incompatível com a divisão racional da existência. Toda mescla, aliás, toda falta de distinção nítida, inequívoca, torna-se suspeita ao espírito dominante. Essa rígida divisão da vida em duas moedas enaltece a coisificação que entrementes subjugou quase completamente o tempo livre.

Podemos esclarecer isso de forma simples através da ideologia do ‘hobby’. Na naturalidade da pergunta sobre qual ‘hobby’ se tem está subentendido que se deve ter um, porventura, também já escolhido de acordo com a oferta do negócio do tempo livre. Liberdade organizada é coercitiva. Ai de ti se não tens um ‘hobby’, se não tens uma ocupação para o tempo livre então tu és um pretencioso ou antiquado, um bicho raro, e cais em ridículo perante a sociedade, a qual te impinge o que deve ser o teu tempo livre. Tal coação não é, de nenhum modo, somente exterior. Ela se liga às necessidades das pessoas sob um sistema funcional. No ‘camping’ – no antigo movimento juvenil, gostava-se de acampar – havia protesto contra o tédio e o convencionalismo burgueses. O que os jovens queriam era sair, no duplo sentido da palavra. Passar-a-noite-a-céu-aberto equivalia a escapar de casa, da família. Essa necessidade, depois da morte do movimento juvenil, foi aproveitada e institucionalizada pela indústria do ‘camping’. Ela não poderia obrigar as pessoas a comprar barracas e ‘motor-homes’, além de inúmeros utensílios auxiliares, se algo nas pessoas não ansiasse por isso; mas, a própria necessidade de liberdade é funcionalizada e reproduzida pelo comércio; o que elas querem lhes é mais uma vez imposto. Por isso a integração do tempo livre é alcançada sem maiores dificuldades; as pessoas não percebem o quanto não são livres, lá onde mais livres se sentem, porque a regra de tal ausência de liberdade foi abstraída delas.

Se o conceito de tempo livre, em oposição ao de trabalho, é colocado de maneira tão estrita, como, ao menos, corresponde a uma velha ideologia, hoje talvez ultrapassada, então ele se torna algo nulo – Hegel teria dito: abstrato. Exemplar é o comportamento daqueles que se deixam queimar ao sol, só por amor ao bronzeado e, embora o estado de letargia a pleno sol não seja prazeroso de maneira nenhuma, e talvez desagradável fisicamente, o certo é que torna as pessoas espiritualmente inativas. O caráter fetichista da mercadoria se apodera, através do bronzeado da pele – que, de resto, pode ficar muito bem – das pessoas em si; elas se transformam em fetiches para si mesmas. A idéia de que uma garota, graças à sua pele bronzeada, tenha um atrativo erótico especial, é provavelmente apenas uma racionalização. O bronzeado tornou-se um fim em si, mais importante que o flerte para o qual talvez devesse servir em princípio. Quando um funcionário retorna das férias sem ter obtido a cor obrigatória, pode estar certo de que os colegas perguntarão mordazes: “Mas não estavas de férias?” O fetichismo que medra no tempo livre está sujeito a controles sociais suplementares. Que a indústria dos cosméticos, com sua propaganda avassaladora e inevitável, contribua para isso é tão natural e evidente quanto o é que as pessoas condescendentes o reprimam.

No estado de letargia culmina um momento decisivo do tempo livre nas condições atuais: o tédio. Insaciáveis são também as sátiras sobre as maravilhas que as pessoas esperam das viagens de férias ou de qualquer situação excepcional do tempo livre, enquanto tampouco aqui conseguem escapar do sempre-igual; a que não se dissipa mais, como o ‘ennui’ (enfado) de Baudelaire, com a distância. Gracejos em relação à vítima são o acompanhamento dos mecanismos que a tomam tal. Schopenhauer formulou cedo uma teoria sobre o tédio. De acordo com o seu pessimismo metafísico, ele ensinava que, ou as pessoas sofrem pelo apetite insatisfeito de sua cega vontade, ou se entendiam tão pronto aquele esteja satisfeito. A teoria descreve muito bem o que ocorre com o tempo livre das pessoas sob aquelas condições, que Kant teria denominado situação de heteronomia e que, hoje, em alemão moderno, se costuma chamar de heterodeterminação; também o arrogante dito por Schopenhauer de que as pessoas são produtos fabris da natureza atinge, através de seu cinismo, algo daquilo que determina nas pessoas a totalidade do caráter de mercadoria. Seu irado cinismo sempre as dignifica mais do que as solenes afirmações de que elas possuem um núcleo imperdível. Apesar disso, a teoria schopenhaueriana, não deve ser hipostasiada, nem ser considerada pura e simplesmente válida ou, porventura, ser encarada como condição original da espécie humana. O tédio existe em função da vida sob a coação do trabalho e sob a rigorosa divisão do trabalho. Não teria que existir. Sempre que a conduta no tempo livre é verdadeiramente autônoma, determinada pelas próprias pessoas enquanto seres livres, é difícil que se instale o tédio; tampouco ali onde elas perseguem seu anseio de felicidade, ou onde sua atividade no tempo livre é racional em si mesma, como algo em si de pleno sentido. O próprio bobear [Blödeln] não precisa ser obtuso, podendo ser beatificamente desfrutado como dispensa dos autocontroles. Se as pessoas pudessem decidir sobre si mesmas e sobre suas vidas, senão tivessem encerradas no sempre-igual, então não se entediariam. Tédio é o reflexo do cinza objetivo. Ocorre com ele algo semelhante ao que se dá com a apatia política. A razão mais importante para esta última é o sentimento, de nenhum modo injustificado das massas, de que, com a margem de participação na política que lhes é reservada pela sociedade, pouco podem mudar em sua existência, bem como, talvez, em todos os sistemas da Terra atualmente. O nexo entre a política e seus próprios interesses lhes é opaco, por isso recuam diante da atividade política. Em íntima relação com o tédio está o sentimento, justificado ou neurótico, de impotência: tédio é o desespero objetivo. Mas, ao mesmo tempo, também é a expressão de deformações que a Constituição global da sociedade produz nas pessoas. A mais importante, sem dúvida, é a detração da fantasia e o seu atrofiamento. A fantasia fica tão suspeita quanto a curiosidade sexual e o anseio pelo proibido, assim como dela suspeita o espírito de uma ciência que já não é mais espírito. Quem quiser adaptar-se, deve renunciar cada vez mais à fantasia. Em geral, mutilada por alguma experiência da 1ª infância, nem consegue desenvolvê-la. A falta de fantasia, implantada e insistentemente recomendada pela sociedade, deixa as pessoas desamparadas em seu tempo livre. A pergunta descarada sobre o que o povo fará com todo o tempo livre de que hoje dispõe – como se este fosse uma esmola e não um direito humano – baseia-se nisso. Que efetivamente as pessoas só consigam fazer tão pouco de seu tempo livre se deve a que, de antemão, já lhes foi amputado o que poderia tornar prazeroso o tempo livre. Tanto ele lhes foi recusado e difamado que já nem o querem mais. A diversão, por cuja superficialidade o conservadorismo cultural as esnoba ou injuria, lhes é necessária para forjar no horário de trabalho aquela tensão que o ordenamento da sociedade, elogiado por este mesmo conservadorismo cultural, exige delas. Esta não é a última das razões por que as pessoas seguem acorrentadas ao trabalho e ao sistema que as adestra para o trabalho depois que, em grande medida, ele já nem necessitaria desse trabalho.

Sob as condições vigentes, seria inoportuno e insensato esperar ou exigir das pessoas que realizem algo produtivo em seu tempo livre, uma vez que se destruiu nelas justamente a produtividade, a capacidade criativa. Aquilo que produzem no tempo livre, na melhor das hipóteses, nem é muito melhor que o ‘hobby’: imitações de poesias ou pinturas, as quais sob a divisão do trabalho, dificilmente revogável, outros fazem bem melhor que os artistas das horas vagas [Freizeitler]. O que produzem tem algo de supérfluo. Essa superfluidade comunica-se à qualidade inferior da produção, ficando com isso estragada a alegria do trabalho.

Também a atividade supérflua e sem sentido do tempo livre é socialmente integrada. Novamente entra em jogo uma necessidade social. Certas formas de serviços, em especial os domésticos, extinguem-se; a demanda é desproporcional em relação à oferta. Nos Estados Unidos, somente pessoas realmente abastadas podem manter criadas; a Europa segue rapidamente pelo mesmo caminho. Isto obriga muitas pessoas a realizar atividades subalternas que antes eram delegadas. A isso se vincula o lema ‘Do it yourself’, ‘Faça você mesmo’, como conselho prático; sem dúvida, também no fastio que as pessoas experimentam ante a mecanização que as alivia de uma carga sem que elas – e esse fato não é contestável, somente sua Interpretação habitual – saibam fazer uso do tempo ganho. Daí que novamente no interesse de indústrias especializadas sejam encorajadas a fazer elas mesmas o que outros poderiam fazer por elas melhor e mais facilmente e que, no fundo, por isso mesmo, elas têm que desdenhar. De resto, pertence a uma camada muita antiga da consciência burguesa que o dinheiro gasto com serviçais, na sociedade de divisão do trabalho, poderia ser economizado por obstinado interesse pessoal, cego ao fato de que o mecanismo todo só se mantém vivo através de práticas especializadas. Wilhelm Tell, o abominável protótipo de uma personalidade rude, preconiza que o machado em casa economiza o carpinteiro; assim também, das máximas de Schiller, poder-se-ia compilar toda uma ontologia da consciência burguesa.

O ‘Do it yourself’, um tipo de comportamento recomendado atualmente para o tempo livre, inscreve-se, não obstante em um contexto mais amplo. Eu já o designei, há mais de 30 anos atrás como pseudo-atividade. Desde então, a pseudo-atividade ampliou-se assustadoramente, também e precisamente entre aqueles que se sentem como questionadores da sociedade. De uma forma geral, pode-se presumir, na pseudo-atividade, uma necessidade represada de mudanças nas relações fossilizadas. Pseudo-atividade é espontaneidade mal-orientada. Mal-orientada, mas não por acaso, e sim porque as pessoas pressentem surdamente quão difícil seria para elas mudar o que pesa sobre seus ombros. Preferem deixar-se desviar para atividades aparentes, ilusórias, para satisfações compensatórias institucionalizadas, a tomas consciência de quão obstruída está hoje tal possibilidade. Pseudo-atividades são ficções e paródias daquela produtividade que a sociedade, por um lado, reclama incessantemente, e por outro lado, refreia e não quer muito nos indivíduos. Tempo livre produtivo só seria possível para pessoas emancipadas, não para aquelas que, sob a heteronomia, tornaram-se heterônomas também para si próprias.

Tempo livre, entretanto, não está em oposição somente com trabalho. Em um sistema, no qual o pleno emprego tornou-se um ideal em si mesmo, o tempo livre segue diretamente o trabalho como sua sombra. Ainda faz falta uma penetrante sociologia do esporte, sobretudo do espectador esportivo. Todavia, parece evidente a hipótese, entre outras, de que mediante os esforços requeridos pelo esporte, mediante a funcionalização do corpo no ‘team’, que se realiza precisamente nos esportes prediletos, as pessoas adestram-se sem sabê-lo para as formas de comportamento mais ou menos sublimadas que delas se espera no processo do trabalho. A velha argumentação de que se pratica esporte para permanecer ‘fit’ só pelo fato de colocar a ‘fitness’ como fim em si; ‘fitness’ para o trabalho é contudo uma das finalidades secretas do esporte. De muitas maneiras, no esporte, nós nos obrigaremos a fazer certas coisas – e então gozaremos como sendo triunfo da própria liberdade – que, sob a pressão social, nós temos que obrigar-nos a fazer e ainda temos que achar palatável.

Permitam-me ainda uma palavra sobre a relação entre o tempo livre e a indústria cultural. Sobre esta, enquanto meio de domínio e de integração, foi escrito tanto desde que Horkheimer e eu introduzimos o seu conceito há mais de vinte anos, que me limitarei a destacar um problema específico de que não conseguimos dar-nos conta na ocasião. O crítico da ideologia que se ocupa da indústria cultural haverá de inclinar-se para a opinião de que – uma vez que os ‘standarts’ da indústria cultural são os mesmos dos velhos passatempos e da arte menor, congelados – ela domina e controla, de fato e totalmente, a consciência e inconsciência daqueles aos quais se dirige e de cujo gosto ela procede, desde a era liberal. Além disso, há motivos para admitir que a produção regula o consumo tanto na vida material quanto na espiritual, sobretudo ali onde se aproximou tanto do material como na indústria cultural. Deveríamos, portanto, pensar que a indústria cultural e seus consumidores são adequados um ao outro como, porém, a indústria cultural, entretanto, tornou-se totalmente fenômeno do sempre-igual, do qual promete afastar temporariamente as pessoas, é de se duvidar se a equação entre e indústria cultural e aconsciência dos consumidores é precedente. Há alguns anos, no Instituto de Pesquisas Sociais de Frankfurt, realizamos um estudo consagrado a esse problema. Infelizmente, a valoração do material teve que ceder lugar à tarefas mais urgentes. Mesmo assim, uma ligeira vista-d’olhos desse material pode ser relevante em alguns pontos para o assim chamado problema do tempo livre. O estudo era relativo ao casamento da Princesa Beatriz da Holanda com o jovem diplomata alemão Claus von Amsberg. Deveríamos verificar como o povo alemão reagia a esse casamento, o qual, difundido por todos os meios de comunicação de massas e minuciosamente descrito pelas revistas ilustradas, era consumido durante o tempo livre. Dado o modo de apresentação e a quantidade de arquivos que foram escritos sobre o acontecimento, atribuindo-lhe importância extraordinária, esperávamos que também os telespectadores e os leitores o considerariam igualmente importante. Acreditávamos, em especial que operaria a hoje típica ideologia da personalização, que consiste em atribuir-se importância desmedida a pessoas individuais e a relações privadas contra o efetivamente determinante desde o ponto de vista social, evidentemente como compensação da funcionalização da realidade. Com toda prudência, gostaria de dizer que tais expectativas eram demasiado simples. O estudo oferece diretamente um paradigma de como uma reflexão teórico-crítica pode aprender da investigação social empírica e retificar-se sobre a base desta. Esboçam-se sintomas de uma consciência duplicada. Por um lado, o acontecimento foi degustado como um aqui e agora, como algo que a vida geralmente nega às pessoas; deveria ser único [einmalig], segundo clichê da moda na linguagem alemã de hoje. Até aqui, a reação dos expectadores encaixou-se no conhecido esquema que transforma em bem de consumo inclusive as notícias atuais e quiçá, as políticas. Mas, em nosso questionário, complementamos, para efeito de controle, as perguntas tendentes a conhecer as reações imediatas, com outras orientadas a averiguar significação política atribuíam os interrogados ao tão alardeado acontecimento. Verificamos que muitos – a proposição não vem ao caso agora – inesperadamente se portaram de modo bem realista e avaliavam com sentido crítico a importância política e social de um acontecimento, cuja singularidade bem propagada os havia mantido em suspenso ante a tela do televisor. Em conseqüência, se minha conclusão não é muito apressada, as pessoas aceitam e consomem o que a indústria cultural lhes oferece para o tempo livre, mas com o tipo de reserva, de forma semelhante à maneira como mesmo os mais ingênuos não consideram reais os episódios oferecidos pelo teatro e pelo cinema. Talvez mais ainda: não se acredita inteiramente neles. É evidente que ainda não se alcançou inteiramente a integração da consciência e do tempo livre. Os interesses reais do indivíduo ainda são suficientemente fortes para, dentro de certos limites, resistir à apreensão [Erfassung] total. Isso coincidiria com o prognóstico social segundo o qual, uma sociedade, cujas contradições fundamentais permancem inalteradas, também não poderia ser totalmente integrada pela consciência. A coisa não funciona assim tão sem dificuldades, e menos no tempo livre, que, sem dúvida envolve as pessoas, mas, segundo seu próprio conceito não pode envolvê-las completamente sem que isso fosse demasiado para elas. Renuncio a esboçar as conseqüências disso; penso, porém, que se vislumbra aí uma chance de emancipação que poderia, enfim, contribuir algum dia com a sua parte para que o tempo livre [Freizeit] se transforme em liberdade. [Freiheit].

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

greve de educação?



greve é um momento grave, ainda que seja confuso e disputado, mas que momento não é?

estudantes em greve de fome no chile para a educação ser reconhecida como um direito social,

isto é: não vise o lucro; não seja tratada como mercadoria,

afinal, a escola não é um mercado de ideias,

a escola é a formação do cidadão para a liberdade,

e sem liberdade não há educação, assim como sem educação não haverá liberdade.

sem liberdade só haverá doutrinamento e treinamento, ou domesticação.

a educação é o espaço propiciador da emancipação e da autonomia,

pelo conhecimento e pela criação, pela experiência e pela ação,

a educação se relaciona com as necessidades de sobrevivência, as condições da produção,

mas ao modo da liberdade situada e não da liberdade sitiada.

dá pra entender porque os economistas da educação gostam tanto de citar o chile como exemplo de seus miraculosos planos de reformas educacionais, mais vale dizer de rendição das escolas e universidades ao mercado: uma educação totalmente voltada para o lucro, tanto em sua prática quanto em seu conteúdo ideológico, onde os livros didáticos incluem materiais publicitários como parte do conteúdo e os currículos são transformados em listas de competências para a formação de funcionários flexíveis e eficazes.

funcionários do quê?
da máquina do capital?
da superexploração da natureza e do homem?
da corrupção e da hipocrisia estampadas nas caras e falas da politicagem?

dá pra entender por que fazer greve por aqui?

por plano de carreira e concursos,
pela valorização dos corpos docente e técnico da escola,
pelo cumprimento dos acordos anteriormente estabelecidos em negociações.

por questões objetivas e graves,
que dizem respeito ao bom exercício da educação,
para todos, isto é, para a sociedade, isto é, para cada um de nós.

greve é um momento grave,
a educação é um direito social,
a greve na educação só pode querer
que a sociedade exerça e amplie seu direito.

educação na greve não é educação em greve,
quer dizer,
a educação é para todo dia,
a educação é de todo dia,
todo dia é grave e leve.

terça-feira, 5 de julho de 2011

Kant na lista de Schindler?

Parte 2: a moralidade trágica no cinema

Adaptado de: Julio Cabrera. De Hitchcock a Greenaway pela história da filosofia. São Paulo: Nankin, 2007.


O filósofo alemão contemporâneo Karl-Otto Apel coloca o problema das condições de aplicação responsável de uma moral universal de inspiração kantiana, dentro de uma sociedade que, de fato, não segue tal moralidade, e que inclusive sistematicamente a desobedece, uma sociedade tal que nela “o estado de direito não se realizou ou (...) não funciona”. “Uma pessoa deve, honestamente, pagar seus impostos quando outras não o fazem?” Apel escreve: “A resposta a esta pergunta somente pode ser, em minha opinião, a seguinte: (...) não é possível exigir moralmente que, sem ponderação responsável dos resultados e subconsequências possíveis de sua ação, deva comportar-se segundo um princípio moral incondicionalmente válido. (...) no caso de um encontro com um criminoso, ou com uma organização como a Gestapo, não poderíamos renunciar à mentira, à fraude e, inclusive, ao uso da força, senão deveríamos tentar agir estrategicamente de modo adequado à situação (...)” . O exemplo do nacional-socialismo parece constituir a maior contestação da adoção da ética kantiana, em favor de alguma forma de ética conseqüencial, seja o do utilitarismo, seja uma postura transcendental pós-metafísica ao estilo de Apel.
Também Peter Singer, que explicitamente cita o caso de Oskar Schindler, opta por uma ética conseqüencial, não kantiana, em situações dramáticas como o nacional-socialismo: “Oskar Schindler era um pequeno industrial alemão. Durante a Guerra, ele tinha uma fábrica nos arredores de Cracóvia, na Polônia. Quando os judeus poloneses começaram a ser mandados para os campos de extermínio, Schindler reuniu uma força de trabalho constituída por judeus provenientes dos campos de concentração e dos guetos. Os trabalhadores eram em número muito maior do que a fábrica precisava e, para protegê-los, Schindler recorreu a várias estratégias ilegais inclusive recorrendo ao suborno de membros da SS e de outros oficiais. Gastava seu próprio dinheiro para comprar alimentos no mercado ilegal, pois era preciso complementar as escassas rações oficiais que obtinha para seus empregados. Graças a estes métodos, pôde salvar a vida de mais ou menos mil e duzentas pessoas”. Singer comenta: “O projeto nazista de extermínio dos judeus foi, obviamente, uma atrocidade, e Oskar Schindler estava completamente certo em fazer o que fez, para impedir que alguns judeus se tornassem suas vítimas (dado o risco que correra, foi também moralmente heróico ao fazê-lo)” .
Eu quero sustentar aqui que A lista de Schindler, o filme de Steven Spielberg, pode ser visto como um poderoso argumento visual em favor de uma ética de princípios de tipo kantiano, contra éticas meramente consequencialistas, mesmo sendo uma obra que trata do nazismo que, como vimos, pareceria constituir o contra-argumento paradigmático contra éticas de princípios, e contra a ética de Kant em particular. O lugar-comum, sempre repetido, consiste em dizer que a ética kantiana é “inaplicável” em situações-limite como as mostradas abundantemente no filme, e que isso deveria levar à adoção de uma ética conseqüencial “adaptada às circunstâncias”. Vou tentar mostrar que o filme de Spielberg problematiza essa interpretação da ética kantiana como fracassada diante de situações como o nazismo, e que a reflexão fílmica que ele propõe dissolve a nítida distinção entre esses dois tipos de teoria moral moderna, em benefício de uma terceira possibilidade (pós-moderna?), que poderíamos denominar de moralidade trágica.
No início do filme, Oskar Schindler (Liam Neeson) é mostrado como um negociante pragmático que lucra, de maneira pouco escrupulosa, com a situação de penúria dos judeus. Na cena em que o trabalhador maneta insiste em cumprimentá-lo em seu escritório, Schindler se mostra irritado, adota atitudes egoístas e arrogantes. Mais adiante, uma bonita mulher, que intercede em favor de seu velho pai, só consegue ser recebida por Schindler quando se veste de maneira atraente. A cena decisiva da conscientização moral de Schindler parece ser a da evacuação do gueto de Varsóvia, por ele assistida durante um passeio a cavalo. Mas se as futuras ações de Schindler em favor dos judeus são consideradas “moralmente boas”, elas não parecem motivadas, primeiramente, pelo puro dever (“Devo tratar de aliviar as pessoas que sofrem, na medida em que dessa maneira elas sejam tratadas como fins, mediante uma máxima que sempre se pode universalizar”), nem tampouco observando-se as conseqüências delas (“Devo tratar de aliviar as pessoas que sofrem porque isso trará como consequência a felicidade do maior número”). As ações de Schindler parecem muito mais motivadas por algo como um sentimento básico de repugnância e de repulsa, não redutíveis a uma análise fria nem de princípios nem de conseqüências. O cinema possui a “linguagem” apropriada para mostrar a importância destes impactos emocionais primitivos dentro da constituição de uma consciência moral.
Os sentimentos foram excluídos por Kant, da motivação moral genuína, porque ele pensa nos sentimentos, como foi visto, no registro da busca insaciável do prazer por parte de seres humanos fracos e autobenevolentes. Mas, ao contrário, o filme de Spielberg mostra que os sentimentos podem também ser pensados no registro da pura e simples fuga da dor insuportável e que essa fuga (que não é de forma alguma busca pelo prazer, e sim uma luta pela mera sobrevivência) pode constituir motivo legítimo de ação, de um ponto de vista moral.
Utilizando a “linguagem” do cinema, Spielberg não faz afirmações pontuais ou diretas sobre Schindler, e sim o mostra vivendo, sintética e extensivamente, em vários momentos significativos. Nesta “expansividade temporal” dos conceitos-imagem, Schindler não se mostra permanentemente como pessoa moral, tal como na linguagem escrita da filosofia, onde as exigências do conceito-ideia não exibem o movimento que levaria da indiferença moral à tomada de consciência. O cinema não alcança a sua própria universalidade mediante algum tipo de “resumo conceitual”, e sim mediante a demonstração de fragmentos de uma vida, de comportamentos fluidos e frágeis. A filosofia escrita refere-se somente a um momento arbitrariamente privilegiado da experiência, furtando a fluidez da vida mediante uma idealização, o que nos induz a pensar que as posturas éticas podem ser destacadas e definidas.
Se Spielberg se opõe a Kant e à sua filosofia simplista dos sentimentos, por outro lado tampouco os princípios utilitaristas são aqui relevantes, já que não é em virtude de suas conseqüências que as ações de Schindler podem ser consideradas moralmente boas. Em uma situação como aquela, é quase absurdo falar da “felicidade da maioria”. Para Schindler, os números são irrelevantes. Uma pessoa ou mil e duzentas não farão diferença,posto que, para ele (segundo o mostra a cena do discurso final, em que Schindler se lamenta de não ter vendido seu carro e podido salvar com isso uma única vida humana a mais), a vida é considerada, kantianamente, como um fim em si mesmo, antes de qualquer consideração numérica: as ações de Schindler não são boas por ter conseguido salvar mil e duzentas pessoas do holocausto, e nem sequer o seria se ele tivesse conseguido salvar tão-somente só uma vida humana. Essas ações são boas pela pura intenção de Schindler de salvá-las, mesmo que não tivesse conseguido fazê-lo em nenhum caso (ainda que, digamos, os oficiais nazistas tivessem fuzilado todos os seus trabalhadores antes do final da Guerra). Spielberg acentua no filme o valor intrínseco da vida humana, para além de cálculos utilitaristas, que, na melhor das hipóteses, virão depois. Se Schindler mente aos oficiais nazistas, não é porque isso tenha primeiramente boas conseqüências, e sim, em primeiro lugar, porque certas situações trágicas fazem com que a vida humana somente possa ser honrada em si mesma não dizendo a verdade: para além do utilitarismo conseqüencial e do rigorismo kantiano, o filme apontaria para uma moralidade trágica que contém um elemento kantiano inextirpável, o valor da pessoa humana como fim.
O argumento do valor intrínseco da vida humana é analisado imageticamente por Spielberg por meio do personagem que é o próprio conceito-imagem dessa noção, mas, paradoxalmente, por ser aquele para quem a vida humana não tem nenhum valor: o Herr comandant Amon Goeth (Ralph Fiennes). Numa cena com Schindler e Amon, o primeiro tenta, mediante um truque, criar em Amon algum sentimento de piedade, dizendo-lhe que o verdadeiro poder, pelo qual Amon está obcecado, consistem em perdoar as suas vítimas, como o faziam os imperadores romanos. Nesta cena, Schindler cuida para que as ações de Amon tenham, pelo menos, “boas conseqüências” mediante um motivo ilegítimo, já que é absolutamente impossível que Amon consiga mover as suas ações por qualquer tipo de motivo moral. Schindler tenta fazer de Amon, pelo menos, um utilitarista cínico, o qual, em se tratando de um oficial nazista, representa um tremendo progresso moral. Assim como os subornos praticados por Schindler poderiam ser considerados como lamentáveis epifenômenos de sua boa vontade, também as “boas ações” de Amon poderão ser epifenômenos aproveitáveis de sua imutável má vontade. De todas as maneiras, a jogada de Schindler fracassa. Amon tenta primeiramente aplicar esse conselho na pessoa do pequeno Lisiek, sem empregado, mas a crueldade fala mais alto. Em meio ao campo de concentração, desde a sua sacada, todas as manhãs Amon se diverte matando prisioneiros com seu fuzil de mira, e assim o faz com o jovem Lisiek, a quem graciosamente acaba de perdoar (seguindo o sorrateiro conselho de Schindler), e que morre por não ter conseguido limpar as manchas da banheira.
A situação dos homens trabalhando constantemente sob a mira da arma de Amon é um arrepiante conceito-imagem da desvalorização absoluta da vida humana. Esse conceito já havia sido apresentado em outros momentos do filme, por exemplo quando Schindler consegue resgatar seu assistente, o contador Isaak Stern (Bem Kingsley), do trem que o levava para o campo de concentração (o soldado encarregado comenta: “Na verdade, para nós é a mesma coisa, um judeu a mais ou a menos não faz a menor diferença”). Ou a imagem do velho trabalhador “morrendo” diversas vezes por causa de um revólver que não funciona. A prisioneira Helen Hirsch, obrigada a ser a empregada doméstica de Amon, diz a Schindler: “Cada vez mais a gente se dá conta de que não há regras, de não há nada que você possa fazer ou dizer que te deixe a salvo”.
Mas, precisamente, as ações de Amon Goeth contra o afirmado pelas morais utilitaristas, não são más ou monstruosas, primariamente, em virtude de suas conseqüências, como se disséssemos: é mau que Amon Goeth, de sua sacada, mate prisioneiros com seu fuzil, porque isso traz a infelicidade de um grande número de pessoas. Parece que, da mesma forma que ocorre na conscientização moral de Schindler, há na mostruosidade moral de Amon algo de mais primordial do que uma fria análise de conseqüências. Sua imoralidade provém de uma perversidade anterior, de um pathos de total desvalorização da vida humana. Assim como a moralidade de Schindler provém primariamente de uma comoção que o leva a valorizar a vida humana como um fim em si, a imoralidade de Amon provém primariamente de uma comoção contrária, que o leva a ver a vida humana como uma peça substituível e sem qualquer valor. Em nenhum dos dois casos são as conseqüências de ações o que é considerado primeiro, ainda que venham a ser importantes em um segundo momento.
É correta a análise conseqüencial que Peter Singer faz da conduta de Schindler? Ao subornar, mentir e roubar, foi a sua conduta uma total ruptura com os princípios da moral kantiana? Eu acredito que não. O filme de Spielberg mostra um terceiro tipo de moralidade, a que chamo de moralidade trágica: trata-se de uma moralidade guiada por princípios kantianos, em particular pela idéia do valor em si da pessoa, mas que, ao se confrontar com situações particularmente difíceis, deve exercer-se tragicamente, ou seja, contra seus próprios princípios. É o valor da pessoa o que será preservado mediante o suborno, o roubo e a mentira, e não primariamente as conseqüências das ações. O que situações como o nazismo mostram não é o fracasso da moral kantiana, e sim seu caráter trágico, ao ser obrigada a exercer-se em um “povo de demônios”, para usar uma expressão do próprio Kant. A linguagem sintética, expansiva e emocional do cinema é capaz de mostrar essa tragicidade da moral de princípios com cores particularmente vivas. Contra Peter Singer, Spielberg mostra Schindler não como um consequencialista, mas como um kantiano trágico.