sexta-feira, 7 de junho de 2019

Como educar para a cidadania global?

"Será que a cidadania global realmente precisa das humanidades?

Ela precisa de uma grande quantidade de conhecimento factual, e os alunos podem adquiri-lo sem uma educação humanista - por exemplo, absorvendo os fatos em livros didáticos padronizados (...), apenas substituindo os fatos incorretos pelos corretos e aprendendo as técnicas básicas de economia.

Contudo, a cidadania responsável exige muito mais: a capacidade de avaliar as provas históricas, de utilizar os princípios econômicos e de raciocinar criticamente a respeito deles, de avaliar relatos de justiça social, de falar um idioma estrangeiro, de compreender as complexidades das principais regiões do mundo. A parte factual sozinha poderia ser transmitida sem as competências e as técnicas que acabamos associando às humanidades.

Porém, uma lista de fatos, sem a capacidade de avaliá-los ou de compreender como a narrativa foi construída a partir das evidências, é quase tão ruim quanto a ignorância, uma vez que o aluno não será capaz de diferenciar estereótipos grosseiros difundidos por líderes políticos e culturais de verdade, ou afirmações falsas das verdadeiras.

A história do mundo e o conhecimento econômico, então, devem ser humanísticos e críticos se quiserem ter alguma utilidade na formação de cidadãos do mundo inteligentes; e eles devem ser ensinados junto com o estudo das religiões e das teorias filosóficas do direito.

Só então fornecerão uma base útil para os debates públicos que devemos realizar se quisermos cooperar na solução dos principais problemas da humanidade."

Martha Nussbaum. Sem fins lucrativos: por que a democracia precisa das humanidades.
São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 93-94.


quarta-feira, 10 de abril de 2019

Coleção Filosofia em Cordel no. 11 - Lindoaldo Campos

Filosofia Política 2
O fabuloso triálogo de João Grilo, o Prefeito Tomás e Lúcio Mata Borrão
Platão - Hobbes - Locke - Rousseau - Montesquieu
Autor: Lindoaldo Campos

(N) - Peço a todos os amigos
Derradeira permissão
Pra narrar a última história
Desta nossa coleção
Pra falar de forma crítica
De novo sobre Política
Noutra grande confusão

Num ano de eleição
No dia da votação
Lá estava o "quengo" João
Na praça, sentado em paz
Foi quando um estrupício
De fogos de artifício
Não lhe deixou dormir mais

Vinha o Prefeito Tomás
Candidato à reeleição
Com seu "chaleira" chamado
Lúcio Mata-Borrão
(P) - Fique sabendo, João Grilo
Esse ano estou tranquilo
A política está na mão!

(L) - Já é nossa a eleição
E fica a advertência:
Na política deste ano
Lascou-se a concorrência!
(J) - Mas Política é uma ciência
E não pode ser partida
E também é convivência
Com respeito e decência
Em todo instante da vida

Já nasceu comprometida
Com toda diversidade
Pois Política vem de pólis
(Que, em grego, é cidade)
Onde todos somos um
Na busca do bem comum
De nossa sociedade

(L) - Olha só a autoridade
Com que fala a "realeza"...
(P) - Mas falou uma verdade:
Todo homem tem grandeza
(como dizia Platão)
Quando é um cidadão
Cumprindo bem a função
Que lhe deu a natureza

A cidade tem firmeza
Se nossa alma copia
Alma que tem três partes
Que lutam por primazia:
Apetitiva (quer gozar)
Irascível (quer brigar)
Racional (sabedoria)

Pois bem: a cidadania
Ocorre de forma igual
Tem a Classe Econômica
(Apetite é seu sinal)
Depois vem a Militar
(Com coragem sem igual)
Por fim, vem a Governante
Em que a parte dominante
É a parte racional

A harmonia total
Pra uma cidade inteiriça
É quando não há impasses
E cada uma dessas classes
A uma virtude é submissa:
A primeira, à temperança
A outra, à perseverança
A terceira, à justiça

Sendo assim, não há cobiça
Cada um tem seu papel
(J) - Um nasce pra ser senhor
Já outro pra xeleléu...
(L) - Cada qual na sua via
Viva a Democracia
Liberdade a granel!

(P) - Liberdade é um troféu
Mas excesso é anarquia...
(J) - E quando alguém aproveita
Engana o povo e o sujeita
A uma cruel Tirania
(L) - É por isso que a "negrada"
Deve "de ser" governada
Por quem tem "deplomacia"

(J) - Sofisma e demagogia
Não fazem bem à cidade
O tirano é um escravo
De sua própria vaidade
E o sofista é um babão
Que lhe vende a opinião
Sem procurar a verdade

Por isso, a melhor cidade
É onde tem Sofocracia
(Sophos = sábio / kratos = poder)
(Força com sabedoria)
Pra Platão essa é a lei:
O filósofo é o rei
E o saber é o seu guia

(P) - Mas se ele tem sabedoria
Por que sentiu a vontade
De expulsar os poetas
De sua justa cidade?
(J) - Por pensar na qualidade
Do ensino pra juventude
Mas só dispensou os vates
Cujos falsos disparates
Não educam pra virtude

(L) - Grilo, ninguém se ilude
Com essa tola utopia
Naturalmente egoísta
O homem vive em porfia
É o "estado de natureza":
Competição, agonia
"Guerra de todos contra todos"
Sem um poder que o dome
"O homem é o lobo do homem"
Na luta do dia a dia

(P) - Porém, Hobbes anuncia
Que hoje há garantia
Do contrato social
Onde a gente renuncia
À força individual
Em favor de um soberano
Que traça e conduz o plano
De um poder colossal

É o Estado Nacional
Que por todos é formado
Seu poder é absoluto
Não pode ser questionado
Mantem todos em respeito
Faz as leis, diz por direito
O que é mais adequado

Leviatã, como é chamado
Qual o monstro da Escritura
Grande, forte, poderoso
Invencível criatura
É total, sem divisão
Está sempre com a razão
E o bem comum assegura

(J) - Mas isso é ditadura
E o poder não é de um rei
Ele é da comunidade
Em Locke eu estudei
É o Estado de Direito
Onde vale este preceito:
Ninguém está sobre a lei

(P) - Ora, isso eu também sei
Liberalismo é demais!
Pois defende com vigor
Os bens individuais:
Pois a vida, a liberdade
E nossa propriedade
São direitos naturais

Tudo o que o Estado faz
É somente assegurar
À sociedade civil
Liberdade mercantil
Para bem comerciar
A lei do mercado vai ser
Laissez faire, laissez passer
(Deixai fazer e passar)

(L) - Nessa linha de pensar
Apareceu, outro dia
O Neoliberalismo
Rezando o seguinte guia:
Privatizações, por um lado
Liberdade de mercado
Trazendo o setor privado
Para toda a economia

(J) - Porém, essa ingresia
Já sentiu a decadência
Pois o povo exerceu
O direito à resistência
Pois um governo sem jeito
Que não garante o respeito
Do que é justo e direito
Não merece obediência

Além disso, violência
Não combina com pureza
O homem não é egoísta
Mas é bom por natureza
Então, vem a sociedade
Com a ideia de riqueza
Competição, fuleiragem
E, assim, o bom selvagem
Fica entregue à safadeza

(P) - Mas não negue a grandeza
Do progresso, da cidade...
(J) - Nego nada, nego não
Quem sou eu, por caridade...
Pois Rousseau não ignora
A importância da verdade
Só é contra o pensamento
Que tem tanto enredamento
Que até mata a integridade

E diz, com sinceridade
Que a arte e a ciência
Nasceram de nossos vícios
Da soberba, da insolência:
Da Física, a existência
Vem da feia indiscrição
Da tola superstição
A Astronomia nasceu
E a Eloquência cresceu
Graças à adulação

(L) - Todos "de quatro", então
A solução é "animal"
(J) - Nesse caso, não se esforce...
Mas é outro o ideal:
Recuperar a virtude
Pra gozar de plenitude
De um mundo fraternal

Eis a vontade geral
Onde egoísmo não há
É o interesse comum
Que vence o particular
Isso vem da instrução
Pois somente a educação
Pode o homem humanizar

(P) - João, em mim tu vai votar
Para secretariar
Minha administração
Tens o espírito das leis
De nossa circunscrição
E já diz Montesquieu:
Governar é conhecer
Questões territoriais
Costumes, regras morais
De cada população

Há três tipos de gestão:
A República tem valor
O Despotismo, temor
Monarquia, distinção
(L) - Mas e a Democracia?
(J) - Corrompe-se, se o plano
De um candidato a tirano
É comprar a eleição

Por isso, a solução
Para o abuso de poder
É sua separação
A cada qual um afazer:
Legislativo - regular
Executivo - governar
Judiciário - julgar
Com vigor e com saber

(P) - Mas se governar é reger
O Poder Executivo
É quem manda no "traçado"
(J) - Nenhum deles manda mais
Pois um controla os demais
Mas também é controlado

Cada qual é destacado
Para uma serventia
Mas freios e contrapesos
São rédeas à autonomia
São regulamentações
Interligando as funções
Para terem harmonia

O Executivo envia
Planos ao Legislativo
O Executivo governa
Mas da lei é um cativo
... Mas valei-me São Gaspar
Que o Judiciário vem julgar
O chefe do Executivo!

(N) - Nessa hora, bem altivo
Já dando "voz de prisão"
Chegou o Juiz Feliciano
Junto a meio batalhão
(F) - Está preso, "seu" Tomás
E Lúcio Mata-Borrão
Por fazer "boca de urna"
Bem próximo à votação
E ainda eu anoto:
Por tentar comprar o voto
Deste nobre cidadão

(N) - Instalou-se a confusão
Juntou logo muita gente
Mas tudo foi sossegado
E todos dão um recado
Sábio e conveniente:
(Todos) - Estudem, leiam, discutam
Mas de forma inteligente
Isso aqui foi só pilhéria
Mas Política é coisa séria
Pois é a vida da gente!

Política é uma ciência
Observa a convivência
Levando, com consciência
Ímpeto ao bem geral
Todos juntos nessa via
Ideal do dia a dia
Construindo, em harmonia
A concórdia universal



#FilosofiaNordestina

Coleção Filosofia em Cordel no. 10 - Lindoaldo Campos

Filosofia Política 1
A nunca vista nem ouvida peleja de João Grilo e o Coronel Pereira
Aristóteles - Maquiavel - Karl Marx
Autor: Lindoaldo Campos


(N) - Peço licença aos senhores
Pra fazer a narração
De uma grande peleja
Que se deu lá no sertão
Entre um velho Coronel
De bota, chibata e chapéu
E João Grilo, um sabidão

Deu-se, numa ocasião
"Seu" Malaquias da venda
Mandou João entregar
Uma bonita moenda
Pra fazer caldo de cana
E um cacho de banana
Ao Coronel na fazenda

(J) - Vim trazer a encomenda
Vou chegando lá da feira
(C) - Entre logo, amarelo
Deixe de sua asneira!
Bote aí no pé da porta
Pois a sua cara morta
Já tá dando uma canseira

(J) - Esse Coronel Pereira...
É primeira sem segunda
Homem de muito valor
Chega a educação abunda
Eu lhe trouxe esta banana
E a moenda de cana
Cá em cima da cacunda

Pois sou nau que não afunda
Avião que corta o céu
Carro-tanque pelo morro
Abelha fazendo mel
Tenho consciência crítica
E minha razão política
É "me fazer" de xeleléu

(C) - Ponha-se no seu papel!
Tu estás bestando, João?
Onde é que já se viu
Um matuto ter razão?
É coisa que bem não cabe
De Política tu só "sabe"
Do dia da eleição

(J) - A coisa não é assim não
E lhe deixo esclarecida
A importância do voto
É de todos conhecida
Perdoe, "coronecência"
Pois Política é a ciência
Que conduz a nossa vida

Para o vulgo, ela é tida
Como algo passageiro
Só ligada a eleição
A mutretas, a dinheiro
Mas Política é mais que isso:
Representa o compromisso
De um povo por inteiro

(C) - Eita, amarelo arteiro!
És um grande prosador!
Não negas a tua fama
De "cabra" conversador...
(J) - Não é "lero", meu patrão
Mas, sim, a grande lição
De um grande pensador

Aristóteles, meu senhor
Foi discípulo de Platão
Mas o "mundo das ideias"
Trocou pelo nosso chão
Escritor vasto e fecundo
"Foi-não-foi", o que há no mundo
Teve a sua opinião

Como grande cidadão
De Atenas, onde vivia
Aristóteles escreveu
Com ciência e maestria
Oferecendo à sua cidade
E a toda a humanidade
Provas de sabedoria

O velho Ari já dizia
Hà dois mil anos atrás
Que o homem, sendo justo
É o melhor dos animais
Mas afastado da justiça
É pior do que carniça
Bota a perder os demais

Por tendências naturais
O homem é um animal
Que só vive na cidade
Por instinto social
Procurando o bem viver
Faz leis para proteger
O interesse geral

Fez um plano genial
Sobre as formas de poder:
A Monarquia um só homem
É capaz de exercer
Alguns, na Aristocracia
Muitos na Democracia
Não é difícil entender...

Procurando defender
Um governo equilibrado
Pensou num regime médio
Concluiu que o adequado
É o Poder Constitucional
Onde o chefe principal
É o cidadão honrado

(C) - Eita, "cabra" arretado
Pensa igualzinho a mim
Quando muita gente manda
Só tem resultado ruim
Só presta quando um só manda
Cada qual na sua banda
Cada boi no seu capim

(J) - Coronel, não é assim
É bem outra a lição
Pois a honra de mandar
Pode ser do rico ou não
O importante é o respeito
Ao que é justo e direito
Em qualquer situação

(C) - Coitado, meu caro João
De Política sabes nada
Pois ela tem sua ética
Não está subordinada
À religião ou à moral
Longe do bem e do mal
Nem é certa nem errada

É certeza assegurada
Por vários livros alheios:
O poder é o que vale
Não carece arrodeios
Pra manter a autoridade
É a mais certa verdade:
Os fins justificam os meios

Eu lhe digo sem receios
Anote aí, xeleléu:
A ética e a moral
Têm apenas um papel:
A tomada do poder
Disse isso com saber
Nicolau Maquiavel

Ele fez um escarcéu
Na arte de governar
O Príncipe, seu grande livro
Vou agora lhe explicar:
Não adianta só bondade
Para ser rei de verdade
É preciso dominar

Virtù é a força pra tomar
A Fortuna almejada
Qual seja mulher bonita
Deve assim ser abordada
O príncipe que se enamora
Nem adula nem implora
A coroa desejada

(J) - Mas está ouvindo a zuada
Da moenda funcionando?
Enquanto o nobre proseia
O pobre está trabalhando
O príncipe é ultrapassado
Sem o proletariado
Seu castelo vai minando

(C) - Você tá me provocando
Com toda essa "aresia"?
(J) - Que é isso, meu "cumpade"
Tenha calma, senhoria
Isso é uma explicação
Que nos deu um alemão
Doutor em Economia

Ninguém nega, hoje em dia
Que a Política, como tal
Forma com a Economia
Um par perfeito, ideal
E que a mente se explica
Por aquilo que indica
A base material

(C) - Tu até não falou mal
Pois nossa realidade
É formada por Política
Desde o campo à cidade
Então entra a Economia
E o povo tem o seu guia
Na alta sociedade

(J) - Para falar bem a verdade
A coisa é bem diferente...
Pois observe o senhor
Que o patrão é dependente
De todo trabalhador
Que se esforça, com valor
Pra dar valor a essa gente

(C) - Mas desde que sou vivente
Que assim é o viver:
Uns nascem pra mandar
Outros, pra obedecer
A vida não tem mistério
Do berço ao cemitério
Já se sabe o que vai ser

(J) - Mas não tendo um querer
O homem não tem sentido
Só se torna o que se é
Quando é desenvolvido
É uma questão de ética;
A tal lei da Dialética
Torna rei o oprimido

(C) - Pois saiba que eu duvido
que um matuto banzeiro
Possa ser outra coisa
Do que um tolo "beradeiro"
(J) - É que ainda é escravo
Vivendo como um bicho bravo
Nas furnas do cativeiro

Mas se tivesse, primeiro
Estudo e liberdade
Veria a ideologia
Que encobre a verdade:
Diversos trabalhadores
Sustentam poucos senhores
Com a produtividade

Foi Karl Marx, meu "cumpade"
Aquele que já dizia
A lei do Capitalismo
É a tal da mais-valia
O "menos" que o operário
Recebe do empresário
Por um mísero salário
Virando mercadoria

Com o trabalho de um dia
Só se vive meia hora
É o Capitalismo selvagem
Que o próprio homem devora
Mas vem a revolução
Mudando a situação
Valei-me, Nossa Senhora!

(N) - Então gritou João, pois nessa hora
O Coronel levantou
Deu um fungado medonho
Os olhos abuticou
E gritou com rouquidão:
(C) - Diabo de revolução!
Quem manda aqui, nesse chão
Sou eu mesmo ou não sou?

(N) - Aí "o cancão piou"
Pois então Dona Firmina
A mulher do Coronel
Riscou feito lazarina
(DF) - Manda o quê, vagabundo?
Porque hoje, em todo o mundo
A mulher é quem domina

Tem Dona Leopoldina
Angela Merkel na Alemanha
Também Aldamira Guedes
Indira Gandhi já ganha
Bachelet fez o seu palno
E Alzira Soriano
É mulher que não se acanha!

Homem, largue sua manha
Que o poder se inverteu
Mulher, assuma o trono
Que esse lugar é seu!
Seu "cabra", passe pra dentro
Que hoje aqui, nesse centro
Quem manda mesmo sou eu!

(N) - Grande confusão se deu
Ficou mangando João
O quengo que é mais quengo
De nosso grande sertão
Que, com a Filosofia,
Derruba a hipocrisia
Em qualquer situação

E onde houver um mandão
Querendo escravizar
Homens trabalhadores
Oprimindo seu pensar
É só dizer com alarde:
(Todos) - Prepare o lombo, covarde:
Lá vem João filosofar!!

#FilosofiaNordestina

terça-feira, 12 de março de 2019

Conceito de ética ainda é pouco entendido na escola


Conceito de ética ainda é pouco entendido na escola
Jornal do Brasil, 11 de junho de 2000
Entrevista com o professor Yves de La Taille por Eliane Bardanachvili

- A escola tem regras demais e princípios de menos: o que isto quer dizer?

- Muitas escolas, hoje, queixam-se de problemas de disciplina por parte de seus alunos. Se formos verificar, veremos que tais escolas têm, em geral, um regimento com inúmeras regras. Ficam misturadas e ganham o mesmo peso regras convencionais, como o uso do uniforme, e princípios morais, como a proibição do uso da violência, num emaranhado, cujo real sentido não é explicitado para os alunos e professores. A cobrança de obediência passiva a todas as regras acaba por ter efeito oposto. Se, em vez de arrolar regras, a escola deixasse claros os princípios éticos que norteiam o convívio entre professores, alunos e funcionários, ela seria mais transparente, e, logo, mais ética, e conseguiria relações sociais mais ricas e pacíficas. Um princípio como o do respeito mútuo, por exemplo, é abrangente e permite inspirar um grande número de regras de conduta. Além do mais, a consciência de alguns princípios permite aos próprios alunos discutir e criar algumas regras que os traduzam. Ao estabelecerem contratos, as pessoas sentem-se mais responsáveis e ganham autonomia.

- Como seriam esses contratos?

- Uma espécie de combinação, em que cada um empenha sua palavra e, logo, sente-se engajado e responsável pelo seu cumprimento. Os alunos podem estabelecer entre eles algumas metas a serem atingidas conjuntamente, por exemplo, cuidar que a escola permaneça limpa. E eles mesmos podem decidir as sanções cabíveis para quem desrespeitar essa meta. Geralmente, as pessoas têm maior tendência a obedecer as regras que ajudam a criar do que as que vêm impostas de fora. Quando a regra vem de fora, ela é ligada a um ele, enquanto, se provém de um contrato, relaciona-se ao nós. Pode-se ter medo do castigo do ele, mas tem-se vergonha do juízo daquele que é considerado um membro do grupo. A vergonha é um sentimento moral, que ocorre mesmo sem a presença física de outros. O medo do poder do outro não é um sentimento moral, é apenas temor da retaliação, que desaparece com a certeza da impunidade.

- Por que o tema 'ética', incluído entre os temas transversais dos Parâmetros Curriculares Nacionais, tornou-se importante na rotina escolar?

- A vontade de falar de ética vem de um certo cansaço das pessoas com o individualismo reinante e a falta de projetos e valores coletivos. Por outro lado, e isto é problemático, esta vontade pode vir de problemas de disciplina das crianças, em casa, ou na sala de aula. Nem todos os problemas de disciplina relacionam-se com a ética (há também indisciplinas plenamente éticas, se motivadas pelo sentimento de impedir uma injustiça). A formação ética das novas gerações nada tem a ver com torna-las passivamente obedientes. A ética pede ação, crítica e engajamento.

- Em que a compreensão do conceito de ética pode contribuir na trajetória do aluno?

- O papel da escola tem se restringido ao de preparação de mão-de-obra. Assim, traça-se cruelmente uma fronteira entre os alunos com sucesso e os fracassados, quando é um lugar de convívio social rico, onde se discutem valores, se experimentam formas solidárias de vida etc. Um aluno que não consiga, em determinado momento, apresentar resultados escolares dos melhores, pode estar se destacando de outras formas e, se tiver isso valorizado, pode voltar a ter confiança em si e, consequentemente, melhorar sua capacidade de aprender. Uma escola ética acolhe as diferenças, as dificuldades de aprendizagem. A compreensão do que seja ética, por parte dos professores e dos alunos, pode influir não somente sobre os comportamentos de cada um, mas sobre o conjunto das atividades desenvolvidas no contexto escolar.

- Por que o senhor estabelece diferença entre ética e moral?

- Na base, estas duas palavras são sinônimos: dizem respeito a como devemos nos conduzir perante os outros e perante nós mesmos, isto é, referem-se aos valores que elegemos para pautar nossa vida. Mas estabelecer sentidos diferentes para estes conceitos é muito importante, sobretudo quando estamos falando de educação. Considero a moral um conjunto de regras precisas e prescritivas, e ética um conjunto de princípios norteadores da conduta, de onde são deduzidas as regras. Neste sentido, a ética relaciona-se à autonomia, pois a pessoa autônoma é capaz de, em variadas situações, para as quais não existem normas prontas, tomar decisões, criar novas regras. Podemos, também estabelecer outra diferença entre moral e ética, constatando que a primeira associa-se a valores e regras que se aplicam no convívio privado, com familiares e amigos, e a segunda, ao convívio público, com pessoas desconhecidas.

- Pode nos dar um exemplo?

- Algumas pessoas seguem a moral, mas não a ética. Por exemplo, sabem que ser honesto é necessário, são honestas com os amigos, mas não veem grandes problemas em enganar pessoas estranhas ao seu círculo íntimo. Sabem que não se joga lixo no chão e não o fazem no chão de casa, embora não se incomodem em fazê-lo na rua. A escola deve se preocupar em formar pessoas que entendam a aplicação dos valores éticos a todos os seres humanos, e não apenas a pessoas privilegiadas.

- Como abordar a ética entre os alunos na escola?

- Basicamente, de três formas complementares. A primeira é cuidar do convívio escolar, que deve ser um modelo de relações éticas. É muito difícil formar cidadãos justos se a própria escola é um lugar onde acontecem injustiças. Os alunos costumam ficar muito atentos a isto e frequentemente reparam que inúmeras regras se aplicam apenas a eles ficando, por exemplo, os professores e a direção acima da lei. Isto os leva a não legitimar as regras uma vez que, na prática, elas não valem para todos. A segunda forma de implementar a formação ética dos alunos é a escola compreender e leva-los a compreender as dimensões éticas próprias de cada disciplina. Por exemplo, em Língua Portuguesa, temos a questão do uso da norma culta: o dizer ‘nós vai’, ao invés de ‘nós vamos’ transcende a questão gramatical, pois valores sociais estão em jogo. Um menino pobre que comece a empregar o ‘nós vamos’ em sua comunidade pode ser rejeitado por ela, ser considerado metido. Isso tem que ser levado em conta pela escola.

- E em outras disciplinas, como isso se dá?

- Em nossa cultura, costuma-se considerar um aluno que vai mal em Geografia ou História apenas como preguiçoso e o que vai mal em Matemática como pouco inteligente. Por quê? Este diagnóstico errado mexe com a auto-estima. O professor de Matemática deve cuidar para que esta associação não seja feita, nem por ele, nem pelos alunos. Trata-se de uma questão com implicações éticas óbvias. Finalmente, a terceira forma de se abordar a ética na escola refere-se ao que eu chamaria de instrumentalização: não basta querer ser ético, é preciso saber como ser ético, ter meios para isto. Penso que cada escola deveria, por exemplo, dar aulas de primeiros socorros. Há pesquisas que mostram que pessoas que sabem objetivamente como ajudar os outros costumam ter condutas mais solidárias.

- Neste contexto, qual a importância de se estimular a criação de grêmios estudantis nas escolas?

- Os grêmios representam, em geral, uma iniciativa positiva por parte dos alunos, que se reúnem, aprendem a cooperar, a discutir temas diretamente ligados a sua rotina e também temas mais amplos. O cuidado que se deve tomar é para que os grêmios não se tornem corporativistas, ou seja, cuidem apenas de problemas estudantis, sem qualquer referência ao bem comum. Este perigo existe em qualquer tipo de associação de classe e a escola deve manter-se atenta para afastá-lo.

ESCOLA É LOCAL DE MUDANÇA – “A escola, em vez de receber criticamente as influências da sociedade, entrega-se a elas”.

- A crise ética que vivemos, hoje, pode ser superada com um bom trabalho na escola? Ou a escola reflete uma sociedade sem ética?

- Não há dúvidas de que a escola, como as demais instituições sociais, acaba por refletir os valores da sociedade como um todo. Assim, se, hoje, a escola lida com a violência, por exemplo, não é porque tenha gerado esta violência, mas porque ela está em todos os lugares, na mídia, no trânsito, nos assaltos, na política. A escola não está em uma redoma, abrigada das influências sociais. Mas isto não quer dizer que seja mera vítima, nem quer dizer que nada possa fazer. Frequentemente, é a escola que, em vez de receber criticamente as influências da sociedade, entrega-se a elas. Isto se percebe no discurso empresarial que tem sido assumido por várias escolas particulares: os alunos viram clientes, o saber vira produto e as relações de autoridade acabam por inverter-se, passando os alunos a não respeitarem seus professores, porque são eles, ou melhor, seus pais que “pagam a escola”. O discurso empresarial pouco se adequa à função da escola e das universidades, mas muitas delas deixam passivamente que ele penetre nas salas de aula.

- Que poderes tem a escola para interferir na reversão de determinada realidade?

- Se é verdade que a escola sofre influências, é também verdade que ela pode influir. Afinal, é nela que as novas gerações recebem o essencial de sua formação. Não esqueçamos também que, praticamente, toda a população acaba por ter um vínculo com a escola, alguns porque são alunos, alguns porque são pais, tios ou avós de alunos, outros porque são professores ou prestam alguma forma de assessoria. A escola pode e deve exercer alguma forma de liderança na discussão dos temas sociais.

- As relações dentro da escola, entre direção e professores, entre professores e alunos, ainda são permeadas pelo poder. Como mudar este quadro?

- Temos duas formas distintas de relação: autoridade e autonomia. Por exemplo, o cargo de presidente da República, naturalmente, confere autoridade a quem o ocupa, mas apenas durante o tempo que o ocupa. Frequentemente, competência, responsabilidade e autoridade andam juntos. Tomemos o exemplo do professor: ele ocupa um cargo porque, espera-se, tem a competência para isso, e este cargo lhe confere responsabilidades. Assim, é normal que ele tenha, de direito, autoridade em relação a seus alunos. Como as relações de autoridade implicam pedir aos alunos que cumpram determinadas tarefas, a dimensão do poder está inevitavelmente presente na escola. Todo o problema reside em estabelecer os limites desse poder, e é aí que chegamos à autonomia.

- De que forma?

- O professor pensa que o aluno não tem autonomia em determinadas áreas do saber e que, portanto, cabe a ele, professor, dirigir o processo de ensino-aprendizagem. Esta avaliação, no entanto, é falha, tornando o exercício da autoridade um abuso de poder, um ato de autoritarismo. A Psicologia já demonstrou que os alunos têm mais autonomia intelectual e moral do que antes se pensava. É um desrespeito monitorar as condutas de alguém, quando este alguém é perfeitamente capaz de tomar decisões e assumir as responsabilidades decorrentes.

- E na relação entre direção e professores?

- A mesma coisa pode ser dita se a direção pensa que deve decidir e controlar tudo o que o professor faz em sala de aula, ela está não somente atravancando o processo de ensino/aprendizagem, que requer liberdade, como desrespeitando e infantilizando o professor. As pessoas agarram-se a pequenos poderes, não porque pensam que são necessários, mas porque sentem imenso prazer em exercê-los.

- Governo federal, educadores, secretários de educação, vêm buscando e defendendo a autonomia da escola, um quadro que vai contra a cultura antiga de centralização à qual a equipe escolar está acostumada...

- É verdade. A cultura brasileira, em geral, é autoritária e paternalista. Desconfia-se a priori de que as pessoas não saberão fazer o que lhes pedem, ou que serão desonestas. Daí a crença na necessidade de controle incessante e sufocante. Nas escolas, é a mesma coisa: pensa-se que a centralização e o controle constante são absolutamente necessários, e isto a despeito de muitas experiências educacionais bem-sucedidas terem nascido justamente de iniciativas locais, com grande participação criativa de professores e alunos. Não se muda uma cultura em poucos anos, mas penso que a democratização do país ajudará, paulatinamente, a inverter esse processo. Os Parâmetros Curriculares Nacionais representam bom exemplo de atribuição de autonomia e de respeito a professores e alunos: estes parâmetros lançam diretrizes gerais e dizem que a tradução destas deverá ser feita em cada região, em cada estabelecimento de ensino, em cada sala de aula.

- O senhor tem um livro publicado que trata de limites e superação de limites. De que forma estas ideias estão relacionadas ao aluno e à escola?

- Como se sabe, a palavra limite é muito empregada hoje, mas, infelizmente, apenas no seu sentido restritivo. Resolvi ampliar o sentido desta metáfora, pensando os limites de três formas diferentes. A primeira é a clássica: limites a não serem ultrapassados, interdições, portanto. A segunda trata dos limites a serem ultrapassados, no sentido da auto-superação. Na terceira, estariam os limites como fronteiras que protegem a privacidade e que, portanto, as crianças devem construir para se protegerem de invasões alheias em seu mundo psíquico. Penso que as três dimensões de limite interessam à educação. O livro contém um alerta: se é verdade que, em parte, a educação tem falhado no estabelecimento de limites (à violência, por exemplo), é também verdade que tem deixado de estimular os alunos a ultrapassarem os próprios, no caminho da auto-superação e desenvolvimento.

- Como ocorre esse desestímulo?

- Ao invés de levar os alunos até a cultura, a escola infantiliza a cultura, para que possa ser, sem maiores esforços, assimilada pelos alunos. O entretenimento ocupa o lugar do esforço, e o prazer imediato substitui a construção de projetos de vida. Quanto aos limites que protegem a intimidade, penso que também eles devem ser lembrados numa sociedade tão invasiva. A escola deve estar atenta pois, não raras vezes, invade a privacidade dos alunos, fazendo-os passar por inúmeros testes psicológicos e entrevistas. Se um aluno não quiser escrever uma redação sobre o tema minhas férias, ele tem direito de recusar esta tarefa. Ninguém pode obriga-lo a falar de sua privacidade. E a escola abusa deste falar de si como recurso pedagógico.


segunda-feira, 11 de setembro de 2017

O ódio - Wislawa Szymborska

Vejam como ainda é eficiente,
como se mantém em forma
o ódio no nosso século.
Com que leveza transpõe altos obstáculos.
Como lhe é fácil - saltar, ultrapassar.

Não é como os outros sentimentos
a um tempo mais velhos e mais novos que ele.
Ele próprio gera as causas
que lhe dão vida.
Se adormece, nunca é um sono eterno.
A insônia não lhe tira as forças; aumenta.

Religião, não religião -
contanto que se ajoelhe para a largada.
Pátria, não pátria -
contanto que se ponha a correr.
A Justiça também não se sai mal no começo.
Depois ele já corre sozinho.
O ódio. O ódio.
Seu rosto num esgar
de êxtase amoroso.

Ah, estes outros sentimentos -
fracotes e molengas.
Desde quando a fraternidade
pode contar com a multidão?

Alguma vez a compaixão
chegou primeiro à meta?
Quantos a dúvida arrasta consigo?
Só ele, que sabe o que faz, arrasta.

Capaz, esperto, muito trabalhador.
Será preciso dizer quantas canções compôs?
Quantas páginas da história numerou?
Quantos tapetes humanos estendeu
em quantas praças, estádios?

Não nos enganemos:
ele sabe criar a beleza.
São esplêndidos seus clarões na noite escura.
Fantásticos os novelos das explosões na aurora rosada.
Difícil negar o páthos das ruínas
e o humor tosco
da coluna que sobressai vigorosamente sobre elas.

É um mestre do contraste
entre o estrondo e o silêncio,
entre o sangue vermelho e a neve branca.
E acima de tudo nunca o enfada
o tema do torturador impecável
sobre a vítima conspurcada.

Pronto para novas tarefas a cada instante.
Se tem que esperar, espera.
Dizem que é cego. Cego?
Tem a vista aguda de um atirador
e afoito olha o futuro
- só ele.


Tradução: Regina Przybycien
Publicado em: Szymborska, Wislawa. Um amor feliz. São Paulo: Cia das Letras, 2016.

domingo, 16 de abril de 2017

O senhor das moscas, de William Golding (1954)



Tradução de artigo do The Guardian sobre o livro “O senhor das moscas” (por Marcelo Guimarães; revisão: Maria Fernanda Picanço).

O senhor das moscas, de William Golding (1954)
Robert McCrum
Da série "Os cem melhores romances"

Rejeitado a princípio como “lixo e enfadonho”, o livro que conta a fábula da ilha deserta, uma distopia descrita brilhantemente, tornou-se desde então um clássico.

Como todos os mais recentes romances desta lista (69-73), O Senhor das Moscas deve muito de seu ímpeto e poder sombrios à Segunda Guerra Mundial, na qual Golding serviu como um jovem oficial da marinha. Suas experiências em Walcheren em 1944 nutriram um apetite por extremos quase medievais, misturando ficção e filosofia, o que nem sempre é uma receita para o sucesso em romances. Entretanto, O Senhor das Moscas permanece tanto universal como de fato profundamente inglês, com laços com Defoe, Stevenson e Jack London (Robinson Crusoe, Kidnapped, Coração das Trevas, nesta série - Os cem melhores romances).

Nos anos 1950, agora como professor numa escola de primeiras letras, Golding estava lutando para fazer de si mesmo um romancista, tendo já publicado um livro de poemas em 1934. Sua esposa, Ann, que exerceu um papel crucial em sua vida criativa, sugeriu A Ilha de Coral, de R.M. Ballantyne, como uma fonte de inspiração. O resultado: uma fantasia distópica de sobrevivência pós-apocalíptica de um grupo de adolescentes e pré-adolescentes numa remota ilha tropical. Mas esta é completamente diferente do mundo de Robinson Crusoé ou de Long John Silver.

O Senhor das Moscas (cujo título deriva de uma transcrição de “Beelzebub”) é o trabalho de um professor inglês com um gosto por grandes temas e engaja o leitor em três níveis. Primeiro, é um estudo acurado de adolescentes liberados da coleira das regras e das convenções. Os principais personagens – Ralph, Jack e Porquinho – representam arquétipos do estudante inglês, mas Golding entra em suas peles e os faz reais. Ele sabe como eles pulsam e recorre a sua própria experiência para explorar a ruptura aterrorizante de sua comunidade.

Em segundo e terceiro lugares, O Senhor das Moscas apresenta uma visão da humanidade inimaginável antes dos horrores da Europa nazista, e mergulha em especulações sobre a espécie humana no estado de natureza. Desolador e específico, porém universal, mesclando raiva e angústia, O Senhor das Moscas é tanto um romance dos anos 1950, quanto de todos os tempos. Um estranho tipo de paraíso se torna um retrato desolador da vida em um mundo pós-nuclear. Talvez não seja surpresa que ele tenha se tornado um clássico cult dos anos 60, sendo lido tão avidamente como O Apanhador no Campo de Centeio, To kill a mocking bird e On the road.

Antes de completar seu romance, William Golding tinha sido apenas um tímido e estranho professor de inglês na escola Bispo Wordsworth, em Salisbury, apelidado de “Scruff” (desleixado). O Senhor das Moscas, escrito durante 1952-1953, foi sucessivamente rejeitado antes de sua publicação triunfante em 1954. Primeiramente intitulado “Estranhos de dentro” (Strangers from Within), o romance não apenas recebeu um desprezo quase universal, ele foi também o último lance desesperado de um professor esquisito que tinha lutado por anos para encontrar um público.

Sua filha Judy, nascida no final da guerra, era muito jovem para lembrar de seu pai escrevendo o romance, mas ela me disse numa entrevista alguns anos atrás: “Eu me lembro das cópias do manuscrito indo e vindo, saindo e voltando. Nós vivíamos com uma renda bastante apertada, de modo que a postagem deve ter sido uma despesa significativa”.

A lenda desse romance icônico do pós guerra tornou-se conhecida, com muitos episódios. Quando o romance chegou pela primeira vez na editora Faber & Faber (que seria quem a publicaria afinal), ele era um manuscrito com mordida de cachorro, que tinha obviamente passado por muitas outras editoras. Sua primeiro leitora interna, uma certa Miss Perkins, descartou-o tornando famosa a avaliação negativa ao dizer que o romance era uma “fantasia absurda e desinteressante sobre a explosão de uma bomba atômica nas colônias. Um grupo de crianças que aterrissam numa terra selvagem perto da Nova Guiné. Lixo e enfadonho. Insípido”. Entretanto, um jovem editor recém contratado, Charles Monteith, discordou. Ele viu que o primeiro capítulo (sobre as consequências da bomba) podia ser descartado e lutou pelo livro. Tendo persuadido Golding a cortar e reescrever, encaminhou-o para publicação. Monteith, que eu cheguei a conhecer bem, estava fazendo o que Maxwell Perkins fez por Thomas Wolfe ou Gordon Lish por Raimond Carver. Esta é uma habilidade rara no campo da edição hoje em dia.

Por fim, o romance vendeu mais de dez milhões de cópias, mas a fama e o sucesso não vieram do dia para a noite. A primeira impressão, de cerca de três mil cópias, vendeu vagarosamente. Gradualmente, as qualidades do livro conquistaram atenção qualificada. Um ponto de virada ocorreu quando E. M. Forster elegeu O Senhor das Moscas como seu “melhor romance do ano”. Outras críticas o descreveram como “uma aventura de primeira categoria, uma parábola de nossos tempos”. Judy Golding me disse que foi somente “cinco anos mais tarde, depois que o filme (dirigido por Peter Brook) apareceu, que eu notei que os pais de meus amigos se tornaram subitamente interessados no papai”.

Desde então, o romance se tornou uma leitura cult. Quando eu trabalhei na Farber nos anos 1980, nós costumávamos reimprimi-lo, cem mil cópias de cada vez, ano após ano. Acredito que isso ainda aconteça. Essa é uma definição de clássico, um livro que mesmo quando o lemos pela primeira vez, nos dá a impressão de reler algo que já lemos antes. Nas palavras de Ítalo Calvino, “um clássico é um livro que nunca esgotou totalmente o que ele tem a dizer para seus leitores”.

O Senhor das Moscas exerceu larga influência sobre muitos escritores ingleses e americanos, incluindo Alex Garland, cujo A Praia faz homenagem ao original de Golding. Nigel Williams também adaptou O Senhor das Moscas para o teatro, numa versão poderosa e contundente, que ajudou a sustentar a trajetória do romance.

Três outros livros de William Golding:
The Inheritors (1955); The Spire (1964); Rites of Passage (1980).

sábado, 15 de abril de 2017

Maurizio Langon. Olimpíadas Filosóficas Uruguaias e Rioplatenses. Uma experiência para levar em conta.

Estudantes participam de oficinas 
na IV Olimpíada Estadual de Filosofia
do Rio de Janeiro - Búzios, 2016


Olimpíadas Filosóficas Uruguaias e Rioplatenses. Uma experiência para levar em conta. 
Maurizio Langon. Novembro/2000. 
(tradução livre)
Nada mais antifilosófico do que uma Olimpíada Filosófica. Nada menos questionador, nada mais individualista nem menos solidário, nada melhor para deter o movimento filosófico concebido como esse infinito querer saber que não se acaba, não termina com nenhum saber concreto.

Por isso, nossa Associação Filosófica do Uruguai discutiu e trabalhou durante um ano a possibilidade de ressignificar filosoficamente a ideia da “Olimpíada Filosófica Internacional” (IPO, International Philosophy Olympiad, iniciada em 1993 na Bulgária), para organizar Olimpíadas Filosóficas Uruguaias em nosso país, e Rioplatenses, com nossos colegas da Argentina.

O modelo elaborado transforma a Olimpíada em um jogo que permite consolidar e aprofundar movimentos [movidas] filosóficos juvenis em nível local, zonal nacional e regional. Demarca-se por uma concepção democrática da filosofia e de seu ensino que propõe filosofar a todos, propõe que todos filosofem. Estimula atitudes filosóficas, propõe desenvolver conceitos filosóficos, fomenta diversas atividades filosóficas. Utilizando basicamente as quatro clássicas “macrohabilidades” intelectuais (escutar, falar, ler, escrever) articula a reflexão pessoal com debate em grupos e produções pessoais e coletivas. Tem em vista uma transformação filosófica de toda a educação, (uma educação que habilite a pensar autonomamente, a duvidar, a criticar, a criar, a debater racionalmente) iniciando pela “filosofização” do próprio ensino da filosofia.

As Olimpíadas Filosóficas Uruguaias se desenvolvem desde 1999. Incluem necessariamente oficinas de estudo e discussão e a produção de trabalhos escritos; às quais costuma-se agregar atividades criativas (exposições, música, pintura, teatro, etc), recreativas e de convivência.

A atividade se centra a cada ano em torno de um problema. Em seus primeiros anos se consideraram esses problemas: “É possível uma sociedade justa?”, “Que paz é desejável?”, “Civilização universal ou culturas nacionais?”, “Para que educar?”, “Exercícios de poder; práticas de liberdade”, “O futuro: é ou se faz?”.

Elabora-se um documento para professores em que se apresenta de modo problematizador a questão e se explica o funcionamento das atividades. Põe-se à disposição dos docentes que desejem desenvolver a experiência em distintas localidades um arquivo com textos selecionados, sugestões didáticas e bibliografia.

As atividades de difusão da ideia culminam em uma jornada de lançamento da Olimpíada, que inclui oficinas de discussão e de escrita. Durante o ano letivo, organizam-se atividades “préolimpícas” que se desenvolvem livremente sob a responsabilidade e iniciativa de cada professor. Consistem em oficinas de investigação e discussão entre os jovens, atividades criativas e de convivência, interação com professores especialistas (conferências, painéis, entrevistas...), etc. Essas tarefas se realizam no desenvolvimento normal dos cursos de filosofia, de maneira extracurricular ou combinando ambas. Também houve experiências exitosas de intercâmbio entre distintas localidades.

A Olimpíada propriamente dita se realiza próximo do final do ano letivo em forma simultânea em todo o país. Consiste em duas partes. Na primeira, formam-se grupos de discussão coordenados por um docente, que debatem durante uma ou duas horas a partir de uma proposta única de caráter nacional. A ideia é enfrentar com todos os participantes o problema a partir da “necessidade comum de superar uma dificuldade desde diferentes pontos de vista” e não desde a “ânsia de cada um de ganhar, impondo sua solução ao outro”. Na segunda atividade (também a partir de um “disparador” único para todo o país), cada participante dispõe de três horas para escrever sua reflexão pessoal levando em conta o que foi debatido previamente em grupo.

Não há etapas de seleção. Os trabalhos escritos são lidos e avaliados de acordo com pautas prefixadas por tribunais locais que selecionam uma frase de cada trabalho para a posterior publicação de um livreto enriquecido com a contribuição de todos. Os trabalhos considerados mais valiosos são remetidos a um júri nacional que escolhe os nove melhores para que seus autores participem das Olimpíadas Rioplatenses, com outros tantos jovens da Argentina. Estimula-se a publicação dos melhores trabalhos tanto locais como nacionais.

As Olimpíadas Filosóficas Rioplatenses se realizam em Colonia del Sacramento. Regem-se por duas máximas: “Ousa pensar por si mesmo!” (Kant) e “A discussão para triunfar deve ser proscrita da aula de filosofia” (Vaz Ferreira). Os professores organizadores de ambos os países chegam a um acordo para a consideração de um problema em comum e de um número reduzido de materiais. Uma Comissão Binacional estabelece as propostas para a parte oral e escrita. Os jovens realizam atividades de confraternização e elaboram uma declaração conjunta. Um Júri Internacional avalia os ensaios, que se espera que sejam publicados.

O impacto positivo das Olimpíadas concebidas desse modo deve ser pensado no contexto do desenvolvimento de uma educação filosófica capaz de colaborar na transformação da educação e na criação de espaços públicos desde onde seja possível uma participação cidadã plena.

Para que as Olimpíadas Filosóficas estejam em condições de contribuir para tais finalidades, é preciso depurá-las dos componentes elitistas eventuais que podem acompanhá-las, o que é parte do esforço necessário para democratizar a filosofia, fazendo dela uma atividade para todos, porém não por isso menos exigente e sólida, mas pelo contrário uma condição para a formulação e o tratamento radical dos problemas que são requeridos pelo momento atual, quer dizer, para filosofar a democracia.