"Será que a cidadania global realmente precisa das humanidades?
Ela precisa de uma grande quantidade de conhecimento factual, e os alunos podem adquiri-lo sem uma educação humanista - por exemplo, absorvendo os fatos em livros didáticos padronizados (...), apenas substituindo os fatos incorretos pelos corretos e aprendendo as técnicas básicas de economia.
Contudo, a cidadania responsável exige muito mais: a capacidade de avaliar as provas históricas, de utilizar os princípios econômicos e de raciocinar criticamente a respeito deles, de avaliar relatos de justiça social, de falar um idioma estrangeiro, de compreender as complexidades das principais regiões do mundo. A parte factual sozinha poderia ser transmitida sem as competências e as técnicas que acabamos associando às humanidades.
Porém, uma lista de fatos, sem a capacidade de avaliá-los ou de compreender como a narrativa foi construída a partir das evidências, é quase tão ruim quanto a ignorância, uma vez que o aluno não será capaz de diferenciar estereótipos grosseiros difundidos por líderes políticos e culturais de verdade, ou afirmações falsas das verdadeiras.
A história do mundo e o conhecimento econômico, então, devem ser humanísticos e críticos se quiserem ter alguma utilidade na formação de cidadãos do mundo inteligentes; e eles devem ser ensinados junto com o estudo das religiões e das teorias filosóficas do direito.
Só então fornecerão uma base útil para os debates públicos que devemos realizar se quisermos cooperar na solução dos principais problemas da humanidade."
Martha Nussbaum. Sem fins lucrativos: por que a democracia precisa das humanidades.
São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 93-94.
Filosofia na Escola
Recursos para aulas de filosofia na escola
sexta-feira, 7 de junho de 2019
quarta-feira, 10 de abril de 2019
Coleção Filosofia em Cordel no. 11 - Lindoaldo Campos
Filosofia Política 2
O fabuloso triálogo de João Grilo, o Prefeito Tomás e Lúcio Mata Borrão
Platão - Hobbes - Locke - Rousseau - Montesquieu
Autor: Lindoaldo Campos
(N) - Peço a todos os amigos
Derradeira permissão
Pra narrar a última história
Desta nossa coleção
Pra falar de forma crítica
De novo sobre Política
Noutra grande confusão
Num ano de eleição
No dia da votação
Lá estava o "quengo" João
Na praça, sentado em paz
Foi quando um estrupício
De fogos de artifício
Não lhe deixou dormir mais
Vinha o Prefeito Tomás
Candidato à reeleição
Com seu "chaleira" chamado
Lúcio Mata-Borrão
(P) - Fique sabendo, João Grilo
Esse ano estou tranquilo
A política está na mão!
(L) - Já é nossa a eleição
E fica a advertência:
Na política deste ano
Lascou-se a concorrência!
(J) - Mas Política é uma ciência
E não pode ser partida
E também é convivência
Com respeito e decência
Em todo instante da vida
Já nasceu comprometida
Com toda diversidade
Pois Política vem de pólis
(Que, em grego, é cidade)
Onde todos somos um
Na busca do bem comum
De nossa sociedade
(L) - Olha só a autoridade
Com que fala a "realeza"...
(P) - Mas falou uma verdade:
Todo homem tem grandeza
(como dizia Platão)
Quando é um cidadão
Cumprindo bem a função
Que lhe deu a natureza
A cidade tem firmeza
Se nossa alma copia
Alma que tem três partes
Que lutam por primazia:
Apetitiva (quer gozar)
Irascível (quer brigar)
Racional (sabedoria)
Pois bem: a cidadania
Ocorre de forma igual
Tem a Classe Econômica
(Apetite é seu sinal)
Depois vem a Militar
(Com coragem sem igual)
Por fim, vem a Governante
Em que a parte dominante
É a parte racional
A harmonia total
Pra uma cidade inteiriça
É quando não há impasses
E cada uma dessas classes
A uma virtude é submissa:
A primeira, à temperança
A outra, à perseverança
A terceira, à justiça
Sendo assim, não há cobiça
Cada um tem seu papel
(J) - Um nasce pra ser senhor
Já outro pra xeleléu...
(L) - Cada qual na sua via
Viva a Democracia
Liberdade a granel!
(P) - Liberdade é um troféu
Mas excesso é anarquia...
(J) - E quando alguém aproveita
Engana o povo e o sujeita
A uma cruel Tirania
(L) - É por isso que a "negrada"
Deve "de ser" governada
Por quem tem "deplomacia"
(J) - Sofisma e demagogia
Não fazem bem à cidade
O tirano é um escravo
De sua própria vaidade
E o sofista é um babão
Que lhe vende a opinião
Sem procurar a verdade
Por isso, a melhor cidade
É onde tem Sofocracia
(Sophos = sábio / kratos = poder)
(Força com sabedoria)
Pra Platão essa é a lei:
O filósofo é o rei
E o saber é o seu guia
(P) - Mas se ele tem sabedoria
Por que sentiu a vontade
De expulsar os poetas
De sua justa cidade?
(J) - Por pensar na qualidade
Do ensino pra juventude
Mas só dispensou os vates
Cujos falsos disparates
Não educam pra virtude
(L) - Grilo, ninguém se ilude
Com essa tola utopia
Naturalmente egoísta
O homem vive em porfia
É o "estado de natureza":
Competição, agonia
"Guerra de todos contra todos"
Sem um poder que o dome
"O homem é o lobo do homem"
Na luta do dia a dia
(P) - Porém, Hobbes anuncia
Que hoje há garantia
Do contrato social
Onde a gente renuncia
À força individual
Em favor de um soberano
Que traça e conduz o plano
De um poder colossal
É o Estado Nacional
Que por todos é formado
Seu poder é absoluto
Não pode ser questionado
Mantem todos em respeito
Faz as leis, diz por direito
O que é mais adequado
Leviatã, como é chamado
Qual o monstro da Escritura
Grande, forte, poderoso
Invencível criatura
É total, sem divisão
Está sempre com a razão
E o bem comum assegura
(J) - Mas isso é ditadura
E o poder não é de um rei
Ele é da comunidade
Em Locke eu estudei
É o Estado de Direito
Onde vale este preceito:
Ninguém está sobre a lei
(P) - Ora, isso eu também sei
Liberalismo é demais!
Pois defende com vigor
Os bens individuais:
Pois a vida, a liberdade
E nossa propriedade
São direitos naturais
Tudo o que o Estado faz
É somente assegurar
À sociedade civil
Liberdade mercantil
Para bem comerciar
A lei do mercado vai ser
Laissez faire, laissez passer
(Deixai fazer e passar)
(L) - Nessa linha de pensar
Apareceu, outro dia
O Neoliberalismo
Rezando o seguinte guia:
Privatizações, por um lado
Liberdade de mercado
Trazendo o setor privado
Para toda a economia
(J) - Porém, essa ingresia
Já sentiu a decadência
Pois o povo exerceu
O direito à resistência
Pois um governo sem jeito
Que não garante o respeito
Do que é justo e direito
Não merece obediência
Além disso, violência
Não combina com pureza
O homem não é egoísta
Mas é bom por natureza
Então, vem a sociedade
Com a ideia de riqueza
Competição, fuleiragem
E, assim, o bom selvagem
Fica entregue à safadeza
(P) - Mas não negue a grandeza
Do progresso, da cidade...
(J) - Nego nada, nego não
Quem sou eu, por caridade...
Pois Rousseau não ignora
A importância da verdade
Só é contra o pensamento
Que tem tanto enredamento
Que até mata a integridade
E diz, com sinceridade
Que a arte e a ciência
Nasceram de nossos vícios
Da soberba, da insolência:
Da Física, a existência
Vem da feia indiscrição
Da tola superstição
A Astronomia nasceu
E a Eloquência cresceu
Graças à adulação
(L) - Todos "de quatro", então
A solução é "animal"
(J) - Nesse caso, não se esforce...
Mas é outro o ideal:
Recuperar a virtude
Pra gozar de plenitude
De um mundo fraternal
Eis a vontade geral
Onde egoísmo não há
É o interesse comum
Que vence o particular
Isso vem da instrução
Pois somente a educação
Pode o homem humanizar
(P) - João, em mim tu vai votar
Para secretariar
Minha administração
Tens o espírito das leis
De nossa circunscrição
E já diz Montesquieu:
Governar é conhecer
Questões territoriais
Costumes, regras morais
De cada população
Há três tipos de gestão:
A República tem valor
O Despotismo, temor
Monarquia, distinção
(L) - Mas e a Democracia?
(J) - Corrompe-se, se o plano
De um candidato a tirano
É comprar a eleição
Por isso, a solução
Para o abuso de poder
É sua separação
A cada qual um afazer:
Legislativo - regular
Executivo - governar
Judiciário - julgar
Com vigor e com saber
(P) - Mas se governar é reger
O Poder Executivo
É quem manda no "traçado"
(J) - Nenhum deles manda mais
Pois um controla os demais
Mas também é controlado
Cada qual é destacado
Para uma serventia
Mas freios e contrapesos
São rédeas à autonomia
São regulamentações
Interligando as funções
Para terem harmonia
O Executivo envia
Planos ao Legislativo
O Executivo governa
Mas da lei é um cativo
... Mas valei-me São Gaspar
Que o Judiciário vem julgar
O chefe do Executivo!
(N) - Nessa hora, bem altivo
Já dando "voz de prisão"
Chegou o Juiz Feliciano
Junto a meio batalhão
(F) - Está preso, "seu" Tomás
E Lúcio Mata-Borrão
Por fazer "boca de urna"
Bem próximo à votação
E ainda eu anoto:
Por tentar comprar o voto
Deste nobre cidadão
(N) - Instalou-se a confusão
Juntou logo muita gente
Mas tudo foi sossegado
E todos dão um recado
Sábio e conveniente:
(Todos) - Estudem, leiam, discutam
Mas de forma inteligente
Isso aqui foi só pilhéria
Mas Política é coisa séria
Pois é a vida da gente!
Política é uma ciência
Observa a convivência
Levando, com consciência
Ímpeto ao bem geral
Todos juntos nessa via
Ideal do dia a dia
Construindo, em harmonia
A concórdia universal
#FilosofiaNordestina
O fabuloso triálogo de João Grilo, o Prefeito Tomás e Lúcio Mata Borrão
Platão - Hobbes - Locke - Rousseau - Montesquieu
Autor: Lindoaldo Campos
(N) - Peço a todos os amigos
Derradeira permissão
Pra narrar a última história
Desta nossa coleção
Pra falar de forma crítica
De novo sobre Política
Noutra grande confusão
Num ano de eleição
No dia da votação
Lá estava o "quengo" João
Na praça, sentado em paz
Foi quando um estrupício
De fogos de artifício
Não lhe deixou dormir mais
Vinha o Prefeito Tomás
Candidato à reeleição
Com seu "chaleira" chamado
Lúcio Mata-Borrão
(P) - Fique sabendo, João Grilo
Esse ano estou tranquilo
A política está na mão!
(L) - Já é nossa a eleição
E fica a advertência:
Na política deste ano
Lascou-se a concorrência!
(J) - Mas Política é uma ciência
E não pode ser partida
E também é convivência
Com respeito e decência
Em todo instante da vida
Já nasceu comprometida
Com toda diversidade
Pois Política vem de pólis
(Que, em grego, é cidade)
Onde todos somos um
Na busca do bem comum
De nossa sociedade
(L) - Olha só a autoridade
Com que fala a "realeza"...
(P) - Mas falou uma verdade:
Todo homem tem grandeza
(como dizia Platão)
Quando é um cidadão
Cumprindo bem a função
Que lhe deu a natureza
A cidade tem firmeza
Se nossa alma copia
Alma que tem três partes
Que lutam por primazia:
Apetitiva (quer gozar)
Irascível (quer brigar)
Racional (sabedoria)
Pois bem: a cidadania
Ocorre de forma igual
Tem a Classe Econômica
(Apetite é seu sinal)
Depois vem a Militar
(Com coragem sem igual)
Por fim, vem a Governante
Em que a parte dominante
É a parte racional
A harmonia total
Pra uma cidade inteiriça
É quando não há impasses
E cada uma dessas classes
A uma virtude é submissa:
A primeira, à temperança
A outra, à perseverança
A terceira, à justiça
Sendo assim, não há cobiça
Cada um tem seu papel
(J) - Um nasce pra ser senhor
Já outro pra xeleléu...
(L) - Cada qual na sua via
Viva a Democracia
Liberdade a granel!
(P) - Liberdade é um troféu
Mas excesso é anarquia...
(J) - E quando alguém aproveita
Engana o povo e o sujeita
A uma cruel Tirania
(L) - É por isso que a "negrada"
Deve "de ser" governada
Por quem tem "deplomacia"
(J) - Sofisma e demagogia
Não fazem bem à cidade
O tirano é um escravo
De sua própria vaidade
E o sofista é um babão
Que lhe vende a opinião
Sem procurar a verdade
Por isso, a melhor cidade
É onde tem Sofocracia
(Sophos = sábio / kratos = poder)
(Força com sabedoria)
Pra Platão essa é a lei:
O filósofo é o rei
E o saber é o seu guia
(P) - Mas se ele tem sabedoria
Por que sentiu a vontade
De expulsar os poetas
De sua justa cidade?
(J) - Por pensar na qualidade
Do ensino pra juventude
Mas só dispensou os vates
Cujos falsos disparates
Não educam pra virtude
(L) - Grilo, ninguém se ilude
Com essa tola utopia
Naturalmente egoísta
O homem vive em porfia
É o "estado de natureza":
Competição, agonia
"Guerra de todos contra todos"
Sem um poder que o dome
"O homem é o lobo do homem"
Na luta do dia a dia
(P) - Porém, Hobbes anuncia
Que hoje há garantia
Do contrato social
Onde a gente renuncia
À força individual
Em favor de um soberano
Que traça e conduz o plano
De um poder colossal
É o Estado Nacional
Que por todos é formado
Seu poder é absoluto
Não pode ser questionado
Mantem todos em respeito
Faz as leis, diz por direito
O que é mais adequado
Leviatã, como é chamado
Qual o monstro da Escritura
Grande, forte, poderoso
Invencível criatura
É total, sem divisão
Está sempre com a razão
E o bem comum assegura
(J) - Mas isso é ditadura
E o poder não é de um rei
Ele é da comunidade
Em Locke eu estudei
É o Estado de Direito
Onde vale este preceito:
Ninguém está sobre a lei
(P) - Ora, isso eu também sei
Liberalismo é demais!
Pois defende com vigor
Os bens individuais:
Pois a vida, a liberdade
E nossa propriedade
São direitos naturais
Tudo o que o Estado faz
É somente assegurar
À sociedade civil
Liberdade mercantil
Para bem comerciar
A lei do mercado vai ser
Laissez faire, laissez passer
(Deixai fazer e passar)
(L) - Nessa linha de pensar
Apareceu, outro dia
O Neoliberalismo
Rezando o seguinte guia:
Privatizações, por um lado
Liberdade de mercado
Trazendo o setor privado
Para toda a economia
(J) - Porém, essa ingresia
Já sentiu a decadência
Pois o povo exerceu
O direito à resistência
Pois um governo sem jeito
Que não garante o respeito
Do que é justo e direito
Não merece obediência
Além disso, violência
Não combina com pureza
O homem não é egoísta
Mas é bom por natureza
Então, vem a sociedade
Com a ideia de riqueza
Competição, fuleiragem
E, assim, o bom selvagem
Fica entregue à safadeza
(P) - Mas não negue a grandeza
Do progresso, da cidade...
(J) - Nego nada, nego não
Quem sou eu, por caridade...
Pois Rousseau não ignora
A importância da verdade
Só é contra o pensamento
Que tem tanto enredamento
Que até mata a integridade
E diz, com sinceridade
Que a arte e a ciência
Nasceram de nossos vícios
Da soberba, da insolência:
Da Física, a existência
Vem da feia indiscrição
Da tola superstição
A Astronomia nasceu
E a Eloquência cresceu
Graças à adulação
(L) - Todos "de quatro", então
A solução é "animal"
(J) - Nesse caso, não se esforce...
Mas é outro o ideal:
Recuperar a virtude
Pra gozar de plenitude
De um mundo fraternal
Eis a vontade geral
Onde egoísmo não há
É o interesse comum
Que vence o particular
Isso vem da instrução
Pois somente a educação
Pode o homem humanizar
(P) - João, em mim tu vai votar
Para secretariar
Minha administração
Tens o espírito das leis
De nossa circunscrição
E já diz Montesquieu:
Governar é conhecer
Questões territoriais
Costumes, regras morais
De cada população
Há três tipos de gestão:
A República tem valor
O Despotismo, temor
Monarquia, distinção
(L) - Mas e a Democracia?
(J) - Corrompe-se, se o plano
De um candidato a tirano
É comprar a eleição
Por isso, a solução
Para o abuso de poder
É sua separação
A cada qual um afazer:
Legislativo - regular
Executivo - governar
Judiciário - julgar
Com vigor e com saber
(P) - Mas se governar é reger
O Poder Executivo
É quem manda no "traçado"
(J) - Nenhum deles manda mais
Pois um controla os demais
Mas também é controlado
Cada qual é destacado
Para uma serventia
Mas freios e contrapesos
São rédeas à autonomia
São regulamentações
Interligando as funções
Para terem harmonia
O Executivo envia
Planos ao Legislativo
O Executivo governa
Mas da lei é um cativo
... Mas valei-me São Gaspar
Que o Judiciário vem julgar
O chefe do Executivo!
(N) - Nessa hora, bem altivo
Já dando "voz de prisão"
Chegou o Juiz Feliciano
Junto a meio batalhão
(F) - Está preso, "seu" Tomás
E Lúcio Mata-Borrão
Por fazer "boca de urna"
Bem próximo à votação
E ainda eu anoto:
Por tentar comprar o voto
Deste nobre cidadão
(N) - Instalou-se a confusão
Juntou logo muita gente
Mas tudo foi sossegado
E todos dão um recado
Sábio e conveniente:
(Todos) - Estudem, leiam, discutam
Mas de forma inteligente
Isso aqui foi só pilhéria
Mas Política é coisa séria
Pois é a vida da gente!
Política é uma ciência
Observa a convivência
Levando, com consciência
Ímpeto ao bem geral
Todos juntos nessa via
Ideal do dia a dia
Construindo, em harmonia
A concórdia universal
#FilosofiaNordestina
Coleção Filosofia em Cordel no. 10 - Lindoaldo Campos
Filosofia Política 1
A nunca vista nem ouvida peleja de João Grilo e o Coronel Pereira
Aristóteles - Maquiavel - Karl Marx
Autor: Lindoaldo Campos
(N) - Peço licença aos senhores
Pra fazer a narração
De uma grande peleja
Que se deu lá no sertão
Entre um velho Coronel
De bota, chibata e chapéu
E João Grilo, um sabidão
Deu-se, numa ocasião
"Seu" Malaquias da venda
Mandou João entregar
Uma bonita moenda
Pra fazer caldo de cana
E um cacho de banana
Ao Coronel na fazenda
(J) - Vim trazer a encomenda
Vou chegando lá da feira
(C) - Entre logo, amarelo
Deixe de sua asneira!
Bote aí no pé da porta
Pois a sua cara morta
Já tá dando uma canseira
(J) - Esse Coronel Pereira...
É primeira sem segunda
Homem de muito valor
Chega a educação abunda
Eu lhe trouxe esta banana
E a moenda de cana
Cá em cima da cacunda
Pois sou nau que não afunda
Avião que corta o céu
Carro-tanque pelo morro
Abelha fazendo mel
Tenho consciência crítica
E minha razão política
É "me fazer" de xeleléu
(C) - Ponha-se no seu papel!
Tu estás bestando, João?
Onde é que já se viu
Um matuto ter razão?
É coisa que bem não cabe
De Política tu só "sabe"
Do dia da eleição
(J) - A coisa não é assim não
E lhe deixo esclarecida
A importância do voto
É de todos conhecida
Perdoe, "coronecência"
Pois Política é a ciência
Que conduz a nossa vida
Para o vulgo, ela é tida
Como algo passageiro
Só ligada a eleição
A mutretas, a dinheiro
Mas Política é mais que isso:
Representa o compromisso
De um povo por inteiro
(C) - Eita, amarelo arteiro!
És um grande prosador!
Não negas a tua fama
De "cabra" conversador...
(J) - Não é "lero", meu patrão
Mas, sim, a grande lição
De um grande pensador
Aristóteles, meu senhor
Foi discípulo de Platão
Mas o "mundo das ideias"
Trocou pelo nosso chão
Escritor vasto e fecundo
"Foi-não-foi", o que há no mundo
Teve a sua opinião
Como grande cidadão
De Atenas, onde vivia
Aristóteles escreveu
Com ciência e maestria
Oferecendo à sua cidade
E a toda a humanidade
Provas de sabedoria
O velho Ari já dizia
Hà dois mil anos atrás
Que o homem, sendo justo
É o melhor dos animais
Mas afastado da justiça
É pior do que carniça
Bota a perder os demais
Por tendências naturais
O homem é um animal
Que só vive na cidade
Por instinto social
Procurando o bem viver
Faz leis para proteger
O interesse geral
Fez um plano genial
Sobre as formas de poder:
A Monarquia um só homem
É capaz de exercer
Alguns, na Aristocracia
Muitos na Democracia
Não é difícil entender...
Procurando defender
Um governo equilibrado
Pensou num regime médio
Concluiu que o adequado
É o Poder Constitucional
Onde o chefe principal
É o cidadão honrado
(C) - Eita, "cabra" arretado
Pensa igualzinho a mim
Quando muita gente manda
Só tem resultado ruim
Só presta quando um só manda
Cada qual na sua banda
Cada boi no seu capim
(J) - Coronel, não é assim
É bem outra a lição
Pois a honra de mandar
Pode ser do rico ou não
O importante é o respeito
Ao que é justo e direito
Em qualquer situação
(C) - Coitado, meu caro João
De Política sabes nada
Pois ela tem sua ética
Não está subordinada
À religião ou à moral
Longe do bem e do mal
Nem é certa nem errada
É certeza assegurada
Por vários livros alheios:
O poder é o que vale
Não carece arrodeios
Pra manter a autoridade
É a mais certa verdade:
Os fins justificam os meios
Eu lhe digo sem receios
Anote aí, xeleléu:
A ética e a moral
Têm apenas um papel:
A tomada do poder
Disse isso com saber
Nicolau Maquiavel
Ele fez um escarcéu
Na arte de governar
O Príncipe, seu grande livro
Vou agora lhe explicar:
Não adianta só bondade
Para ser rei de verdade
É preciso dominar
Virtù é a força pra tomar
A Fortuna almejada
Qual seja mulher bonita
Deve assim ser abordada
O príncipe que se enamora
Nem adula nem implora
A coroa desejada
(J) - Mas está ouvindo a zuada
Da moenda funcionando?
Enquanto o nobre proseia
O pobre está trabalhando
O príncipe é ultrapassado
Sem o proletariado
Seu castelo vai minando
(C) - Você tá me provocando
Com toda essa "aresia"?
(J) - Que é isso, meu "cumpade"
Tenha calma, senhoria
Isso é uma explicação
Que nos deu um alemão
Doutor em Economia
Ninguém nega, hoje em dia
Que a Política, como tal
Forma com a Economia
Um par perfeito, ideal
E que a mente se explica
Por aquilo que indica
A base material
(C) - Tu até não falou mal
Pois nossa realidade
É formada por Política
Desde o campo à cidade
Então entra a Economia
E o povo tem o seu guia
Na alta sociedade
(J) - Para falar bem a verdade
A coisa é bem diferente...
Pois observe o senhor
Que o patrão é dependente
De todo trabalhador
Que se esforça, com valor
Pra dar valor a essa gente
(C) - Mas desde que sou vivente
Que assim é o viver:
Uns nascem pra mandar
Outros, pra obedecer
A vida não tem mistério
Do berço ao cemitério
Já se sabe o que vai ser
(J) - Mas não tendo um querer
O homem não tem sentido
Só se torna o que se é
Quando é desenvolvido
É uma questão de ética;
A tal lei da Dialética
Torna rei o oprimido
(C) - Pois saiba que eu duvido
que um matuto banzeiro
Possa ser outra coisa
Do que um tolo "beradeiro"
(J) - É que ainda é escravo
Vivendo como um bicho bravo
Nas furnas do cativeiro
Mas se tivesse, primeiro
Estudo e liberdade
Veria a ideologia
Que encobre a verdade:
Diversos trabalhadores
Sustentam poucos senhores
Com a produtividade
Foi Karl Marx, meu "cumpade"
Aquele que já dizia
A lei do Capitalismo
É a tal da mais-valia
O "menos" que o operário
Recebe do empresário
Por um mísero salário
Virando mercadoria
Com o trabalho de um dia
Só se vive meia hora
É o Capitalismo selvagem
Que o próprio homem devora
Mas vem a revolução
Mudando a situação
Valei-me, Nossa Senhora!
(N) - Então gritou João, pois nessa hora
O Coronel levantou
Deu um fungado medonho
Os olhos abuticou
E gritou com rouquidão:
(C) - Diabo de revolução!
Quem manda aqui, nesse chão
Sou eu mesmo ou não sou?
(N) - Aí "o cancão piou"
Pois então Dona Firmina
A mulher do Coronel
Riscou feito lazarina
(DF) - Manda o quê, vagabundo?
Porque hoje, em todo o mundo
A mulher é quem domina
Tem Dona Leopoldina
Angela Merkel na Alemanha
Também Aldamira Guedes
Indira Gandhi já ganha
Bachelet fez o seu palno
E Alzira Soriano
É mulher que não se acanha!
Homem, largue sua manha
Que o poder se inverteu
Mulher, assuma o trono
Que esse lugar é seu!
Seu "cabra", passe pra dentro
Que hoje aqui, nesse centro
Quem manda mesmo sou eu!
(N) - Grande confusão se deu
Ficou mangando João
O quengo que é mais quengo
De nosso grande sertão
Que, com a Filosofia,
Derruba a hipocrisia
Em qualquer situação
E onde houver um mandão
Querendo escravizar
Homens trabalhadores
Oprimindo seu pensar
É só dizer com alarde:
(Todos) - Prepare o lombo, covarde:
Lá vem João filosofar!!
#FilosofiaNordestina
A nunca vista nem ouvida peleja de João Grilo e o Coronel Pereira
Aristóteles - Maquiavel - Karl Marx
Autor: Lindoaldo Campos
(N) - Peço licença aos senhores
Pra fazer a narração
De uma grande peleja
Que se deu lá no sertão
Entre um velho Coronel
De bota, chibata e chapéu
E João Grilo, um sabidão
Deu-se, numa ocasião
"Seu" Malaquias da venda
Mandou João entregar
Uma bonita moenda
Pra fazer caldo de cana
E um cacho de banana
Ao Coronel na fazenda
(J) - Vim trazer a encomenda
Vou chegando lá da feira
(C) - Entre logo, amarelo
Deixe de sua asneira!
Bote aí no pé da porta
Pois a sua cara morta
Já tá dando uma canseira
(J) - Esse Coronel Pereira...
É primeira sem segunda
Homem de muito valor
Chega a educação abunda
Eu lhe trouxe esta banana
E a moenda de cana
Cá em cima da cacunda
Pois sou nau que não afunda
Avião que corta o céu
Carro-tanque pelo morro
Abelha fazendo mel
Tenho consciência crítica
E minha razão política
É "me fazer" de xeleléu
(C) - Ponha-se no seu papel!
Tu estás bestando, João?
Onde é que já se viu
Um matuto ter razão?
É coisa que bem não cabe
De Política tu só "sabe"
Do dia da eleição
(J) - A coisa não é assim não
E lhe deixo esclarecida
A importância do voto
É de todos conhecida
Perdoe, "coronecência"
Pois Política é a ciência
Que conduz a nossa vida
Para o vulgo, ela é tida
Como algo passageiro
Só ligada a eleição
A mutretas, a dinheiro
Mas Política é mais que isso:
Representa o compromisso
De um povo por inteiro
(C) - Eita, amarelo arteiro!
És um grande prosador!
Não negas a tua fama
De "cabra" conversador...
(J) - Não é "lero", meu patrão
Mas, sim, a grande lição
De um grande pensador
Aristóteles, meu senhor
Foi discípulo de Platão
Mas o "mundo das ideias"
Trocou pelo nosso chão
Escritor vasto e fecundo
"Foi-não-foi", o que há no mundo
Teve a sua opinião
Como grande cidadão
De Atenas, onde vivia
Aristóteles escreveu
Com ciência e maestria
Oferecendo à sua cidade
E a toda a humanidade
Provas de sabedoria
O velho Ari já dizia
Hà dois mil anos atrás
Que o homem, sendo justo
É o melhor dos animais
Mas afastado da justiça
É pior do que carniça
Bota a perder os demais
Por tendências naturais
O homem é um animal
Que só vive na cidade
Por instinto social
Procurando o bem viver
Faz leis para proteger
O interesse geral
Fez um plano genial
Sobre as formas de poder:
A Monarquia um só homem
É capaz de exercer
Alguns, na Aristocracia
Muitos na Democracia
Não é difícil entender...
Procurando defender
Um governo equilibrado
Pensou num regime médio
Concluiu que o adequado
É o Poder Constitucional
Onde o chefe principal
É o cidadão honrado
(C) - Eita, "cabra" arretado
Pensa igualzinho a mim
Quando muita gente manda
Só tem resultado ruim
Só presta quando um só manda
Cada qual na sua banda
Cada boi no seu capim
(J) - Coronel, não é assim
É bem outra a lição
Pois a honra de mandar
Pode ser do rico ou não
O importante é o respeito
Ao que é justo e direito
Em qualquer situação
(C) - Coitado, meu caro João
De Política sabes nada
Pois ela tem sua ética
Não está subordinada
À religião ou à moral
Longe do bem e do mal
Nem é certa nem errada
É certeza assegurada
Por vários livros alheios:
O poder é o que vale
Não carece arrodeios
Pra manter a autoridade
É a mais certa verdade:
Os fins justificam os meios
Eu lhe digo sem receios
Anote aí, xeleléu:
A ética e a moral
Têm apenas um papel:
A tomada do poder
Disse isso com saber
Nicolau Maquiavel
Ele fez um escarcéu
Na arte de governar
O Príncipe, seu grande livro
Vou agora lhe explicar:
Não adianta só bondade
Para ser rei de verdade
É preciso dominar
Virtù é a força pra tomar
A Fortuna almejada
Qual seja mulher bonita
Deve assim ser abordada
O príncipe que se enamora
Nem adula nem implora
A coroa desejada
(J) - Mas está ouvindo a zuada
Da moenda funcionando?
Enquanto o nobre proseia
O pobre está trabalhando
O príncipe é ultrapassado
Sem o proletariado
Seu castelo vai minando
(C) - Você tá me provocando
Com toda essa "aresia"?
(J) - Que é isso, meu "cumpade"
Tenha calma, senhoria
Isso é uma explicação
Que nos deu um alemão
Doutor em Economia
Ninguém nega, hoje em dia
Que a Política, como tal
Forma com a Economia
Um par perfeito, ideal
E que a mente se explica
Por aquilo que indica
A base material
(C) - Tu até não falou mal
Pois nossa realidade
É formada por Política
Desde o campo à cidade
Então entra a Economia
E o povo tem o seu guia
Na alta sociedade
(J) - Para falar bem a verdade
A coisa é bem diferente...
Pois observe o senhor
Que o patrão é dependente
De todo trabalhador
Que se esforça, com valor
Pra dar valor a essa gente
(C) - Mas desde que sou vivente
Que assim é o viver:
Uns nascem pra mandar
Outros, pra obedecer
A vida não tem mistério
Do berço ao cemitério
Já se sabe o que vai ser
(J) - Mas não tendo um querer
O homem não tem sentido
Só se torna o que se é
Quando é desenvolvido
É uma questão de ética;
A tal lei da Dialética
Torna rei o oprimido
(C) - Pois saiba que eu duvido
que um matuto banzeiro
Possa ser outra coisa
Do que um tolo "beradeiro"
(J) - É que ainda é escravo
Vivendo como um bicho bravo
Nas furnas do cativeiro
Mas se tivesse, primeiro
Estudo e liberdade
Veria a ideologia
Que encobre a verdade:
Diversos trabalhadores
Sustentam poucos senhores
Com a produtividade
Foi Karl Marx, meu "cumpade"
Aquele que já dizia
A lei do Capitalismo
É a tal da mais-valia
O "menos" que o operário
Recebe do empresário
Por um mísero salário
Virando mercadoria
Com o trabalho de um dia
Só se vive meia hora
É o Capitalismo selvagem
Que o próprio homem devora
Mas vem a revolução
Mudando a situação
Valei-me, Nossa Senhora!
(N) - Então gritou João, pois nessa hora
O Coronel levantou
Deu um fungado medonho
Os olhos abuticou
E gritou com rouquidão:
(C) - Diabo de revolução!
Quem manda aqui, nesse chão
Sou eu mesmo ou não sou?
(N) - Aí "o cancão piou"
Pois então Dona Firmina
A mulher do Coronel
Riscou feito lazarina
(DF) - Manda o quê, vagabundo?
Porque hoje, em todo o mundo
A mulher é quem domina
Tem Dona Leopoldina
Angela Merkel na Alemanha
Também Aldamira Guedes
Indira Gandhi já ganha
Bachelet fez o seu palno
E Alzira Soriano
É mulher que não se acanha!
Homem, largue sua manha
Que o poder se inverteu
Mulher, assuma o trono
Que esse lugar é seu!
Seu "cabra", passe pra dentro
Que hoje aqui, nesse centro
Quem manda mesmo sou eu!
(N) - Grande confusão se deu
Ficou mangando João
O quengo que é mais quengo
De nosso grande sertão
Que, com a Filosofia,
Derruba a hipocrisia
Em qualquer situação
E onde houver um mandão
Querendo escravizar
Homens trabalhadores
Oprimindo seu pensar
É só dizer com alarde:
(Todos) - Prepare o lombo, covarde:
Lá vem João filosofar!!
#FilosofiaNordestina
terça-feira, 12 de março de 2019
Conceito de ética ainda é pouco entendido na escola
Conceito de ética
ainda é pouco entendido na escola
Jornal do Brasil, 11 de junho de 2000
Entrevista com o professor Yves de La Taille por
Eliane Bardanachvili
- A
escola tem regras demais e princípios de menos: o que isto quer dizer?
- Muitas escolas, hoje, queixam-se de problemas
de disciplina por parte de seus alunos. Se formos verificar, veremos que tais
escolas têm, em geral, um regimento com inúmeras regras. Ficam misturadas e
ganham o mesmo peso regras convencionais, como o uso do uniforme, e princípios
morais, como a proibição do uso da violência, num emaranhado, cujo real sentido
não é explicitado para os alunos e professores. A cobrança de obediência
passiva a todas as regras acaba por ter efeito oposto. Se, em vez de arrolar regras,
a escola deixasse claros os princípios éticos que norteiam o convívio entre
professores, alunos e funcionários, ela seria mais transparente, e, logo, mais
ética, e conseguiria relações sociais mais ricas e pacíficas. Um princípio como
o do respeito mútuo, por exemplo, é abrangente e permite inspirar um grande
número de regras de conduta. Além do mais, a consciência de alguns princípios
permite aos próprios alunos discutir e criar algumas regras que os traduzam. Ao
estabelecerem contratos, as pessoas sentem-se mais responsáveis e ganham
autonomia.
- Como
seriam esses contratos?
- Uma espécie de combinação, em que cada um empenha sua
palavra e, logo, sente-se engajado e responsável pelo seu cumprimento. Os alunos
podem estabelecer entre eles algumas metas a serem atingidas conjuntamente, por
exemplo, cuidar que a escola permaneça limpa. E eles mesmos podem decidir as
sanções cabíveis para quem desrespeitar essa meta. Geralmente, as pessoas têm
maior tendência a obedecer as regras que ajudam a criar do que as que vêm
impostas de fora. Quando a regra vem de fora, ela é ligada a um ele, enquanto, se provém de um contrato,
relaciona-se ao nós. Pode-se ter medo
do castigo do ele, mas tem-se
vergonha do juízo daquele que é considerado um membro do grupo. A vergonha é um
sentimento moral, que ocorre mesmo sem a presença física de outros. O medo do
poder do outro não é um sentimento moral, é apenas temor da retaliação, que
desaparece com a certeza da impunidade.
- Por que o tema 'ética', incluído entre os temas transversais dos Parâmetros Curriculares
Nacionais, tornou-se importante na rotina escolar?
- A vontade de falar de ética vem de um certo cansaço das
pessoas com o individualismo reinante e a falta de projetos e valores
coletivos. Por outro lado, e isto é problemático, esta vontade pode vir de problemas
de disciplina das crianças, em casa, ou na sala de aula. Nem todos os problemas
de disciplina relacionam-se com a ética (há também indisciplinas plenamente
éticas, se motivadas pelo sentimento de impedir uma injustiça). A formação
ética das novas gerações nada tem a ver com torna-las passivamente obedientes. A
ética pede ação, crítica e engajamento.
- Em que a
compreensão do conceito de ética pode contribuir na trajetória do aluno?
- O papel da escola tem se restringido ao de preparação de mão-de-obra.
Assim, traça-se cruelmente uma fronteira entre os alunos com sucesso e os
fracassados, quando é um lugar de convívio social rico, onde se discutem
valores, se experimentam formas solidárias de vida etc. Um aluno que não
consiga, em determinado momento, apresentar resultados escolares dos melhores,
pode estar se destacando de outras formas e, se tiver isso valorizado, pode
voltar a ter confiança em si e, consequentemente, melhorar sua capacidade de
aprender. Uma escola ética acolhe as diferenças, as dificuldades de
aprendizagem. A compreensão do que seja ética, por parte dos professores e dos
alunos, pode influir não somente sobre os comportamentos de cada um, mas sobre
o conjunto das atividades desenvolvidas no contexto escolar.
- Por que o
senhor estabelece diferença entre ética e moral?
- Na base, estas duas palavras são sinônimos: dizem
respeito a como devemos nos conduzir perante os outros e perante nós mesmos,
isto é, referem-se aos valores que elegemos para pautar nossa vida. Mas estabelecer
sentidos diferentes para estes conceitos é muito importante, sobretudo quando
estamos falando de educação. Considero a moral um conjunto de regras precisas e
prescritivas, e ética um conjunto de princípios norteadores da conduta, de onde
são deduzidas as regras. Neste sentido, a ética relaciona-se à autonomia, pois
a pessoa autônoma é capaz de, em variadas situações, para as quais não existem
normas prontas, tomar decisões, criar novas regras. Podemos, também estabelecer
outra diferença entre moral e ética, constatando que a primeira associa-se a
valores e regras que se aplicam no convívio privado, com familiares e amigos, e
a segunda, ao convívio público, com pessoas desconhecidas.
- Pode nos dar um
exemplo?
- Algumas pessoas seguem a moral, mas não a ética. Por
exemplo, sabem que ser honesto é necessário, são honestas com os amigos, mas
não veem grandes problemas em enganar pessoas estranhas ao seu círculo íntimo. Sabem
que não se joga lixo no chão e não o fazem no chão de casa, embora não se
incomodem em fazê-lo na rua. A escola deve se preocupar em formar pessoas que
entendam a aplicação dos valores éticos a todos os seres humanos, e não apenas
a pessoas privilegiadas.
- Como abordar a
ética entre os alunos na escola?
- Basicamente, de três formas complementares. A primeira é
cuidar do convívio escolar, que deve ser um modelo de relações éticas. É muito
difícil formar cidadãos justos se a própria escola é um lugar onde acontecem
injustiças. Os alunos costumam ficar muito atentos a isto e frequentemente
reparam que inúmeras regras se aplicam apenas a eles ficando, por exemplo, os professores
e a direção acima da lei. Isto os leva a não legitimar as regras uma vez que,
na prática, elas não valem para todos. A segunda forma de implementar a
formação ética dos alunos é a escola compreender e leva-los a compreender as
dimensões éticas próprias de cada disciplina. Por exemplo, em Língua
Portuguesa, temos a questão do uso da norma culta: o dizer ‘nós vai’, ao invés
de ‘nós vamos’ transcende a questão gramatical, pois valores sociais estão em
jogo. Um menino pobre que comece a empregar o ‘nós vamos’ em sua comunidade
pode ser rejeitado por ela, ser considerado metido. Isso tem que ser levado em
conta pela escola.
- E em outras
disciplinas, como isso se dá?
- Em nossa cultura, costuma-se considerar um aluno que vai
mal em Geografia ou História apenas como preguiçoso e o que vai mal em
Matemática como pouco inteligente. Por quê? Este diagnóstico errado mexe com a
auto-estima. O professor de Matemática deve cuidar para que esta associação não
seja feita, nem por ele, nem pelos alunos. Trata-se de uma questão com
implicações éticas óbvias. Finalmente, a terceira forma de se abordar a ética
na escola refere-se ao que eu chamaria de instrumentalização: não basta querer
ser ético, é preciso saber como ser ético, ter meios para isto. Penso que cada
escola deveria, por exemplo, dar aulas de primeiros socorros. Há pesquisas que
mostram que pessoas que sabem objetivamente como ajudar os outros costumam ter
condutas mais solidárias.
- Neste contexto,
qual a importância de se estimular a criação de grêmios estudantis nas escolas?
- Os grêmios representam, em geral, uma iniciativa positiva
por parte dos alunos, que se reúnem, aprendem a cooperar, a discutir temas
diretamente ligados a sua rotina e também temas mais amplos. O cuidado que se
deve tomar é para que os grêmios não se tornem corporativistas, ou seja, cuidem
apenas de problemas estudantis, sem qualquer referência ao bem comum. Este
perigo existe em qualquer tipo de associação de classe e a escola deve
manter-se atenta para afastá-lo.
ESCOLA É LOCAL DE
MUDANÇA – “A escola, em vez de receber criticamente as influências da
sociedade, entrega-se a elas”.
- A crise ética
que vivemos, hoje, pode ser superada com um bom trabalho na escola? Ou a escola
reflete uma sociedade sem ética?
- Não há dúvidas de que a escola, como as demais
instituições sociais, acaba por refletir os valores da sociedade como um todo. Assim,
se, hoje, a escola lida com a violência, por exemplo, não é porque tenha gerado
esta violência, mas porque ela está em todos os lugares, na mídia, no trânsito,
nos assaltos, na política. A escola não está em uma redoma, abrigada das
influências sociais. Mas isto não quer dizer que seja mera vítima, nem quer
dizer que nada possa fazer. Frequentemente, é a escola que, em vez de receber
criticamente as influências da sociedade, entrega-se a elas. Isto se percebe no
discurso empresarial que tem sido assumido por várias escolas particulares: os
alunos viram clientes, o saber vira produto e as relações de autoridade acabam
por inverter-se, passando os alunos a não respeitarem seus professores, porque
são eles, ou melhor, seus pais que “pagam a escola”. O discurso empresarial
pouco se adequa à função da escola e das universidades, mas muitas delas deixam
passivamente que ele penetre nas salas de aula.
- Que poderes tem
a escola para interferir na reversão de determinada realidade?
- Se é verdade que a escola sofre influências, é também
verdade que ela pode influir. Afinal, é nela que as novas gerações recebem o
essencial de sua formação. Não esqueçamos também que, praticamente, toda a
população acaba por ter um vínculo com a escola, alguns porque são alunos,
alguns porque são pais, tios ou avós de alunos, outros porque são professores
ou prestam alguma forma de assessoria. A escola pode e deve exercer alguma
forma de liderança na discussão dos temas sociais.
- As relações
dentro da escola, entre direção e professores, entre professores e alunos,
ainda são permeadas pelo poder. Como mudar este quadro?
- Temos duas formas distintas de relação: autoridade e
autonomia. Por exemplo, o cargo de presidente da República, naturalmente,
confere autoridade a quem o ocupa, mas apenas durante o tempo que o ocupa. Frequentemente,
competência, responsabilidade e autoridade andam juntos. Tomemos o exemplo do
professor: ele ocupa um cargo porque, espera-se, tem a competência para isso, e
este cargo lhe confere responsabilidades. Assim, é normal que ele tenha, de
direito, autoridade em relação a seus alunos. Como as relações de autoridade
implicam pedir aos alunos que cumpram determinadas tarefas, a dimensão do poder
está inevitavelmente presente na escola. Todo o problema reside em estabelecer
os limites desse poder, e é aí que chegamos à autonomia.
- De que forma?
- O professor pensa que o aluno não tem autonomia em
determinadas áreas do saber e que, portanto, cabe a ele, professor, dirigir o
processo de ensino-aprendizagem. Esta avaliação, no entanto, é falha, tornando o
exercício da autoridade um abuso de poder, um ato de autoritarismo. A Psicologia
já demonstrou que os alunos têm mais autonomia intelectual e moral do que antes
se pensava. É um desrespeito monitorar as condutas de alguém, quando este
alguém é perfeitamente capaz de tomar decisões e assumir as responsabilidades
decorrentes.
- E na relação
entre direção e professores?
- A mesma coisa pode ser dita se a direção pensa que deve
decidir e controlar tudo o que o professor faz em sala de aula, ela está não
somente atravancando o processo de ensino/aprendizagem, que requer liberdade,
como desrespeitando e infantilizando o professor. As pessoas agarram-se a
pequenos poderes, não porque pensam que são necessários, mas porque sentem
imenso prazer em exercê-los.
- Governo
federal, educadores, secretários de educação, vêm buscando e defendendo a
autonomia da escola, um quadro que vai contra a cultura antiga de centralização
à qual a equipe escolar está acostumada...
- É verdade. A cultura brasileira, em geral, é autoritária
e paternalista. Desconfia-se a priori de que as pessoas não saberão fazer o que
lhes pedem, ou que serão desonestas. Daí a crença na necessidade de controle
incessante e sufocante. Nas escolas, é a mesma coisa: pensa-se que a
centralização e o controle constante são absolutamente necessários, e isto a
despeito de muitas experiências educacionais bem-sucedidas terem nascido
justamente de iniciativas locais, com grande participação criativa de
professores e alunos. Não se muda uma cultura em poucos anos, mas penso que a
democratização do país ajudará, paulatinamente, a inverter esse processo. Os Parâmetros
Curriculares Nacionais representam bom exemplo de atribuição de autonomia e de
respeito a professores e alunos: estes parâmetros lançam diretrizes gerais e
dizem que a tradução destas deverá ser feita em cada região, em cada
estabelecimento de ensino, em cada sala de aula.
- O senhor tem um
livro publicado que trata de limites e superação de limites. De que forma estas
ideias estão relacionadas ao aluno e à escola?
- Como se sabe, a palavra limite é muito empregada hoje,
mas, infelizmente, apenas no seu sentido restritivo. Resolvi ampliar o sentido
desta metáfora, pensando os limites de três formas diferentes. A primeira é a
clássica: limites a não serem ultrapassados, interdições, portanto. A segunda
trata dos limites a serem ultrapassados, no sentido da auto-superação. Na
terceira, estariam os limites como fronteiras que protegem a privacidade e que,
portanto, as crianças devem construir para se protegerem de invasões alheias em
seu mundo psíquico. Penso que as três dimensões de limite interessam à
educação. O livro contém um alerta: se é verdade que, em parte, a educação tem
falhado no estabelecimento de limites (à violência, por exemplo), é também
verdade que tem deixado de estimular os alunos a ultrapassarem os próprios, no caminho
da auto-superação e desenvolvimento.
- Como ocorre
esse desestímulo?
- Ao invés de levar os alunos até a cultura, a escola
infantiliza a cultura, para que possa ser, sem maiores esforços, assimilada
pelos alunos. O entretenimento ocupa o lugar do esforço, e o prazer imediato
substitui a construção de projetos de vida. Quanto aos limites que protegem a
intimidade, penso que também eles devem ser lembrados numa sociedade tão
invasiva. A escola deve estar atenta pois, não raras vezes, invade a
privacidade dos alunos, fazendo-os passar por inúmeros testes psicológicos e
entrevistas. Se um aluno não quiser escrever uma redação sobre o tema minhas férias, ele tem direito de
recusar esta tarefa. Ninguém pode obriga-lo a falar de sua privacidade. E a
escola abusa deste falar de si como recurso pedagógico.
segunda-feira, 11 de setembro de 2017
O ódio - Wislawa Szymborska
Vejam como ainda é eficiente,
como se mantém em forma
o ódio no nosso século.
Com que leveza transpõe altos obstáculos.
Como lhe é fácil - saltar, ultrapassar.
Não é como os outros sentimentos
a um tempo mais velhos e mais novos que ele.
Ele próprio gera as causas
que lhe dão vida.
Se adormece, nunca é um sono eterno.
A insônia não lhe tira as forças; aumenta.
Religião, não religião -
contanto que se ajoelhe para a largada.
Pátria, não pátria -
contanto que se ponha a correr.
A Justiça também não se sai mal no começo.
Depois ele já corre sozinho.
O ódio. O ódio.
Seu rosto num esgar
de êxtase amoroso.
Ah, estes outros sentimentos -
fracotes e molengas.
Desde quando a fraternidade
pode contar com a multidão?
Alguma vez a compaixão
chegou primeiro à meta?
Quantos a dúvida arrasta consigo?
Só ele, que sabe o que faz, arrasta.
Capaz, esperto, muito trabalhador.
Será preciso dizer quantas canções compôs?
Quantas páginas da história numerou?
Quantos tapetes humanos estendeu
em quantas praças, estádios?
Não nos enganemos:
ele sabe criar a beleza.
São esplêndidos seus clarões na noite escura.
Fantásticos os novelos das explosões na aurora rosada.
Difícil negar o páthos das ruínas
e o humor tosco
da coluna que sobressai vigorosamente sobre elas.
É um mestre do contraste
entre o estrondo e o silêncio,
entre o sangue vermelho e a neve branca.
E acima de tudo nunca o enfada
o tema do torturador impecável
sobre a vítima conspurcada.
Pronto para novas tarefas a cada instante.
Se tem que esperar, espera.
Dizem que é cego. Cego?
Tem a vista aguda de um atirador
e afoito olha o futuro
- só ele.
Tradução: Regina Przybycien
Publicado em: Szymborska, Wislawa. Um amor feliz. São Paulo: Cia das Letras, 2016.
como se mantém em forma
o ódio no nosso século.
Com que leveza transpõe altos obstáculos.
Como lhe é fácil - saltar, ultrapassar.
Não é como os outros sentimentos
a um tempo mais velhos e mais novos que ele.
Ele próprio gera as causas
que lhe dão vida.
Se adormece, nunca é um sono eterno.
A insônia não lhe tira as forças; aumenta.
Religião, não religião -
contanto que se ajoelhe para a largada.
Pátria, não pátria -
contanto que se ponha a correr.
A Justiça também não se sai mal no começo.
Depois ele já corre sozinho.
O ódio. O ódio.
Seu rosto num esgar
de êxtase amoroso.
Ah, estes outros sentimentos -
fracotes e molengas.
Desde quando a fraternidade
pode contar com a multidão?
Alguma vez a compaixão
chegou primeiro à meta?
Quantos a dúvida arrasta consigo?
Só ele, que sabe o que faz, arrasta.
Capaz, esperto, muito trabalhador.
Será preciso dizer quantas canções compôs?
Quantas páginas da história numerou?
Quantos tapetes humanos estendeu
em quantas praças, estádios?
Não nos enganemos:
ele sabe criar a beleza.
São esplêndidos seus clarões na noite escura.
Fantásticos os novelos das explosões na aurora rosada.
Difícil negar o páthos das ruínas
e o humor tosco
da coluna que sobressai vigorosamente sobre elas.
É um mestre do contraste
entre o estrondo e o silêncio,
entre o sangue vermelho e a neve branca.
E acima de tudo nunca o enfada
o tema do torturador impecável
sobre a vítima conspurcada.
Pronto para novas tarefas a cada instante.
Se tem que esperar, espera.
Dizem que é cego. Cego?
Tem a vista aguda de um atirador
e afoito olha o futuro
- só ele.
Tradução: Regina Przybycien
Publicado em: Szymborska, Wislawa. Um amor feliz. São Paulo: Cia das Letras, 2016.
domingo, 16 de abril de 2017
O senhor das moscas, de William Golding (1954)
Tradução de artigo do The Guardian sobre o livro “O senhor das moscas” (por Marcelo Guimarães; revisão: Maria Fernanda Picanço).
O senhor das moscas,
de William Golding (1954)
Robert McCrum
Da série "Os cem melhores romances"
Rejeitado a princípio
como “lixo e enfadonho”, o livro que conta a fábula da ilha deserta, uma distopia descrita brilhantemente,
tornou-se desde então um clássico.
Como todos os mais recentes romances desta lista (69-73), O
Senhor das Moscas deve muito de seu ímpeto e poder sombrios à Segunda Guerra
Mundial, na qual Golding serviu como um jovem oficial da marinha. Suas
experiências em Walcheren em 1944 nutriram um apetite por extremos quase
medievais, misturando ficção e filosofia, o que nem sempre é uma receita para o
sucesso em romances. Entretanto, O Senhor das Moscas permanece tanto universal
como de fato profundamente inglês, com laços com Defoe, Stevenson e Jack London
(Robinson Crusoe, Kidnapped, Coração das Trevas, nesta série - Os cem melhores romances).
Nos anos 1950, agora como professor numa escola de primeiras
letras, Golding estava lutando para fazer de si mesmo um romancista, tendo já
publicado um livro de poemas em 1934. Sua esposa, Ann, que exerceu um papel
crucial em sua vida criativa, sugeriu A Ilha de Coral, de R.M. Ballantyne, como
uma fonte de inspiração. O resultado: uma fantasia distópica de sobrevivência
pós-apocalíptica de um grupo de adolescentes e pré-adolescentes numa remota
ilha tropical. Mas esta é completamente diferente do mundo de Robinson Crusoé
ou de Long John Silver.
O Senhor das Moscas (cujo título deriva de uma transcrição
de “Beelzebub”) é o trabalho de um professor inglês com um gosto por grandes
temas e engaja o leitor em três níveis. Primeiro, é um estudo acurado de
adolescentes liberados da coleira das regras e das convenções. Os principais
personagens – Ralph, Jack e Porquinho – representam arquétipos do estudante
inglês, mas Golding entra em suas peles e os faz reais. Ele sabe como eles
pulsam e recorre a sua própria experiência para explorar a ruptura
aterrorizante de sua comunidade.
Em segundo e terceiro lugares, O Senhor das Moscas apresenta
uma visão da humanidade inimaginável antes dos horrores da Europa nazista, e
mergulha em especulações sobre a espécie humana no estado de natureza. Desolador
e específico, porém universal, mesclando raiva e angústia, O Senhor das Moscas
é tanto um romance dos anos 1950, quanto de todos os tempos. Um estranho tipo
de paraíso se torna um retrato desolador da vida em um mundo pós-nuclear. Talvez
não seja surpresa que ele tenha se tornado um clássico cult dos anos 60, sendo
lido tão avidamente como O Apanhador no
Campo de Centeio, To kill a mocking bird
e On the road.
Antes de completar seu romance, William Golding tinha sido apenas
um tímido e estranho professor de inglês na escola Bispo Wordsworth, em Salisbury, apelidado de “Scruff” (desleixado).
O Senhor das Moscas, escrito durante 1952-1953, foi sucessivamente rejeitado
antes de sua publicação triunfante em 1954. Primeiramente intitulado “Estranhos
de dentro” (Strangers from Within), o
romance não apenas recebeu um desprezo quase universal, ele foi também o último
lance desesperado de um professor esquisito que tinha lutado por anos para
encontrar um público.
Sua filha Judy, nascida no final da guerra, era muito jovem para lembrar de seu pai escrevendo o romance, mas ela me disse numa entrevista alguns anos atrás: “Eu me lembro das cópias do manuscrito indo e vindo, saindo e voltando. Nós vivíamos com uma renda bastante apertada, de modo que a postagem deve ter sido uma despesa significativa”.
A lenda desse romance icônico do pós guerra tornou-se
conhecida, com muitos episódios. Quando o romance chegou pela primeira vez na
editora Faber & Faber (que seria quem a publicaria afinal), ele era um
manuscrito com mordida de cachorro, que tinha obviamente passado por muitas
outras editoras. Sua primeiro leitora interna, uma certa Miss Perkins,
descartou-o tornando famosa a avaliação negativa ao dizer que o romance era uma
“fantasia absurda e desinteressante sobre a explosão de uma bomba atômica nas
colônias. Um grupo de crianças que aterrissam numa terra selvagem perto da Nova
Guiné. Lixo e enfadonho. Insípido”. Entretanto, um jovem editor recém
contratado, Charles Monteith, discordou. Ele viu que o primeiro capítulo (sobre
as consequências da bomba) podia ser descartado e lutou pelo livro. Tendo
persuadido Golding a cortar e reescrever, encaminhou-o para publicação. Monteith,
que eu cheguei a conhecer bem, estava fazendo o que Maxwell Perkins fez por
Thomas Wolfe ou Gordon Lish por Raimond Carver. Esta é uma habilidade rara no
campo da edição hoje em dia.
Por fim, o romance vendeu mais de dez milhões de cópias, mas
a fama e o sucesso não vieram do dia para a noite. A primeira impressão, de
cerca de três mil cópias, vendeu vagarosamente. Gradualmente, as qualidades do
livro conquistaram atenção qualificada. Um ponto de virada ocorreu quando E. M.
Forster elegeu O Senhor das Moscas como seu “melhor romance do ano”. Outras
críticas o descreveram como “uma aventura de primeira categoria, uma parábola de
nossos tempos”. Judy Golding me disse que foi somente “cinco anos mais tarde,
depois que o filme (dirigido por Peter Brook) apareceu, que eu notei que os
pais de meus amigos se tornaram subitamente interessados no papai”.
Desde então, o romance se tornou uma leitura cult. Quando eu
trabalhei na Farber nos anos 1980, nós costumávamos reimprimi-lo, cem mil
cópias de cada vez, ano após ano. Acredito que isso ainda aconteça. Essa é uma
definição de clássico, um livro que mesmo quando o lemos pela primeira vez, nos
dá a impressão de reler algo que já lemos antes. Nas palavras de Ítalo Calvino,
“um clássico é um livro que nunca esgotou totalmente o que ele tem a dizer para
seus leitores”.
O Senhor das Moscas exerceu larga influência sobre muitos
escritores ingleses e americanos, incluindo Alex Garland, cujo A Praia faz
homenagem ao original de Golding. Nigel Williams também adaptou O Senhor das
Moscas para o teatro, numa versão poderosa e contundente, que ajudou a
sustentar a trajetória do romance.
Três outros livros de William Golding:
The
Inheritors
(1955); The Spire (1964); Rites of Passage (1980).
sábado, 15 de abril de 2017
Maurizio Langon. Olimpíadas Filosóficas Uruguaias e Rioplatenses. Uma experiência para levar em conta.
Estudantes participam de oficinas
na IV Olimpíada Estadual de Filosofia
do Rio de Janeiro - Búzios, 2016
Olimpíadas Filosóficas Uruguaias e Rioplatenses. Uma experiência para levar em conta.
(tradução livre)
Nada
mais antifilosófico do que uma Olimpíada Filosófica. Nada menos questionador,
nada mais individualista nem menos solidário, nada melhor para deter o
movimento filosófico concebido como esse infinito querer saber que não se
acaba, não termina com nenhum saber concreto.
Por
isso, nossa Associação Filosófica do Uruguai discutiu e trabalhou durante um
ano a possibilidade de ressignificar filosoficamente a ideia da “Olimpíada
Filosófica Internacional” (IPO, International Philosophy Olympiad, iniciada em
1993 na Bulgária), para organizar Olimpíadas Filosóficas Uruguaias em nosso
país, e Rioplatenses, com nossos colegas da Argentina.
O
modelo elaborado transforma a Olimpíada em um jogo que permite consolidar e
aprofundar movimentos [movidas] filosóficos juvenis em nível local, zonal nacional
e regional. Demarca-se por uma concepção democrática da filosofia e de seu
ensino que propõe filosofar a todos, propõe que todos filosofem. Estimula atitudes filosóficas, propõe desenvolver
conceitos filosóficos, fomenta
diversas atividades filosóficas. Utilizando basicamente as quatro clássicas
“macrohabilidades” intelectuais (escutar, falar, ler, escrever) articula a
reflexão pessoal com debate em grupos e produções pessoais e coletivas. Tem em
vista uma transformação filosófica de toda a educação, (uma educação que
habilite a pensar autonomamente, a duvidar, a criticar, a criar, a debater
racionalmente) iniciando pela “filosofização” do próprio ensino da filosofia.
As
Olimpíadas Filosóficas Uruguaias se desenvolvem desde 1999. Incluem
necessariamente oficinas de estudo e discussão e a produção de trabalhos
escritos; às quais costuma-se agregar atividades criativas (exposições, música,
pintura, teatro, etc), recreativas e de convivência.
A
atividade se centra a cada ano em torno de um problema. Em seus primeiros anos se
consideraram esses problemas: “É possível uma sociedade justa?”, “Que paz é
desejável?”, “Civilização universal ou culturas nacionais?”, “Para que
educar?”, “Exercícios de poder; práticas de liberdade”, “O futuro: é ou se
faz?”.
Elabora-se
um documento para professores em que se apresenta de modo problematizador a
questão e se explica o funcionamento das atividades. Põe-se à disposição dos
docentes que desejem desenvolver a experiência em distintas localidades um
arquivo com textos selecionados, sugestões didáticas e bibliografia.
As
atividades de difusão da ideia culminam em uma jornada de lançamento da
Olimpíada, que inclui oficinas de discussão e de escrita. Durante o ano letivo,
organizam-se atividades “préolimpícas” que se desenvolvem livremente sob a
responsabilidade e iniciativa de cada professor. Consistem em oficinas de
investigação e discussão entre os jovens, atividades criativas e de
convivência, interação com professores especialistas (conferências, painéis, entrevistas...),
etc. Essas tarefas se realizam no desenvolvimento normal dos cursos de
filosofia, de maneira extracurricular ou combinando ambas. Também houve
experiências exitosas de intercâmbio entre distintas localidades.
A
Olimpíada propriamente dita se realiza próximo do final do ano letivo em forma
simultânea em todo o país. Consiste em duas partes. Na primeira, formam-se
grupos de discussão coordenados por um docente, que debatem durante uma ou duas
horas a partir de uma proposta única de caráter nacional. A ideia é enfrentar
com todos os participantes o problema a partir da “necessidade comum de superar uma
dificuldade desde diferentes pontos de vista” e não desde a “ânsia de cada um
de ganhar, impondo sua solução ao outro”. Na segunda atividade (também a partir
de um “disparador” único para todo o país), cada participante dispõe de três
horas para escrever sua reflexão pessoal levando em conta o que foi debatido
previamente em grupo.
Não
há etapas de seleção. Os trabalhos escritos são lidos e avaliados de acordo com
pautas prefixadas por tribunais locais que selecionam uma frase de cada
trabalho para a posterior publicação de um livreto enriquecido com a
contribuição de todos. Os trabalhos considerados mais valiosos são remetidos a
um júri nacional que escolhe os nove melhores para que seus autores
participem das Olimpíadas Rioplatenses, com outros tantos jovens da Argentina.
Estimula-se a publicação dos melhores trabalhos tanto locais como nacionais.
As
Olimpíadas Filosóficas Rioplatenses se realizam em Colonia del Sacramento.
Regem-se por duas máximas: “Ousa pensar por si mesmo!” (Kant) e “A discussão
para triunfar deve ser proscrita da aula de filosofia” (Vaz Ferreira). Os
professores organizadores de ambos os países chegam a um acordo para a consideração de um problema
em comum e de um número reduzido de materiais. Uma Comissão Binacional estabelece as
propostas para a parte oral e escrita. Os jovens realizam atividades de
confraternização e elaboram uma declaração conjunta. Um Júri Internacional
avalia os ensaios, que se espera que sejam publicados.
O
impacto positivo das Olimpíadas concebidas desse modo deve ser pensado no
contexto do desenvolvimento de uma educação filosófica capaz de colaborar na
transformação da educação e na criação de espaços públicos desde onde seja
possível uma participação cidadã plena.
Para
que as Olimpíadas Filosóficas estejam em condições de contribuir para tais
finalidades, é preciso depurá-las dos componentes elitistas eventuais que podem
acompanhá-las, o que é parte do esforço necessário para democratizar a
filosofia, fazendo dela uma atividade para todos, porém não por isso menos
exigente e sólida, mas pelo contrário uma condição para a formulação e o
tratamento radical dos problemas que são requeridos pelo momento atual, quer
dizer, para filosofar a democracia.
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