quinta-feira, 28 de abril de 2011

Uma Criatura

Sei de uma criatura antiga e formidável,
que a si mesma devora os membros e as entranhas,
com a sofreguidão da fome insaciável.

Habita juntamente os vales e as montanhas;
e no mar, que se rasga, à maneira do abismo,
espreguiça-se toda em convulsões estranhas.

Traz impresso na fronte o obscuro despotismo.
Cada olhar que despede, acerbo e mavioso,
parece uma expansão de amor e de egoísmo.

Friamente contempla o desespero e o gozo,
gosta do colibri, como gosta do verme,
e cinge ao coração o belo e o monstruoso.

Para ela o chacal é, como a rola, inerme;
e caminha na terra imperturbável, como
pelo vasto areal um vasto paquiderme.

Na árvore que rebenta o seu primeiro gomo
vem a folha, que lento e lento se desdobra,
depois a flor, depois o suspirado pomo.

Pois essa criatura está em toda a obra:
cresta o seio da flor e corrompe-lhe o fruto;
e é nesse destruir que as suas forças dobra.

Ama de igual amor o poluto e o impoluto;
começa e recomeça uma perpétua lida,
e sorrindo obedece ao divino estatuto.
Tu dirás que é a Morte; eu direi que é a Vida.

Machado de Assis

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