sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Kant e o ensino de filosofia

Notícia do professor Immanuel Kant sobre a organização de suas preleções no semestre de inverno de 1765-1766
[in: KANT, I. Lógica. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1992. Tradução: Guido Antônio de Almeida]

O ensino da juventude envolve sempre a dificuldade de que somos forçados a nos adiantar aos anos com o discernimento e, sem aguardar a maturidade do entendimento, devemos transmitir conhecimentos que, segundo a ordem natural, só poderiam ser alcançados por uma razão mais exercitada e mais experimentada. É aí que tem origem os eternos preconceitos das escolas, mais tenazes e muitas vezes mais desenxabidos do que os comuns, bem como a tagarelice precoce dos jovens pensadores, mais cega do que qualquer outra arrogância e mais insanável do que a ignorância. Não obstante, esta é uma dificuldade que não se pode evitar de todo, porquanto, numa época de uma constituição civil tão cheia da atavios, os discernimentos mais sutis fazem parte dos meios de avançar e tornam-se necessidades que, por sua natureza, deviam ser colocadas entre os adornos da vida e, por assim dizer, entre as belezas supérfluas dela. No entanto, é possível, neste ponto também, acomodar mais o ensino público segundo a natureza, senão harmonizá-lo inteiramente com esta. Com efeito, visto que o progresso natural do conhecimento humano é tal que, primeiro, o entendimento se forma, na medida em que chega pela experiência a juízos intuitivos e, por meio destes, a conceitos, conceitos estes que, em seguida, são colocados pela razão [Vernunft] em relação com as razões [Gründe] e as conseqüências deles, para serem finalmente discernidos [erkannt] por meio da ciência num todo bem ordenado, o ensino também terá que seguir o mesmo caminho. De um professor espera-se, pois, que ele forme em seu ouvinte, primeiro, o homem sensato, depois o homem racional e, por fim, o douto. Semelhante procedimento tem a vantagem de que o aprendiz, mesmo que jamais chegue ao último grau, como em geral acontece, terá sempre ganho alguma coisa com o ensino e se terá tornado mais exercitado e mais atinado, senão perante a escola, pelo menos perante a vida.

Se invertermos esse método, o aluno vai abocanhar uma espécie de razão, antes mesmo que o entendimento tenha sido formado nele, tornando-se portador de uma ciência de empréstimo, , que nele estará, por assim dizer, apenas grudada e não desenvolvida, ao passo que suas aptidões mentais permanecerão tão estéreis como dantes, tendo se tornado, porém, com o delírio da sabedoria, muito mais corrompidas. Aqui está a causa de não raro se encontrarem pessoas doutas (na verdade instruídas) que demonstram pouco entendimento, bem como a razão por que as academias põem no mundo mais cabeças desenxabidas do que qualquer outra instituição da coisa pública.

A regra do comportamento é, pois, a seguinte: antes de mais nada amadurecer o entendimento e acelerar seu crescimento, exercitando-o nos juízos da experiência e despertando sua atenção para aquilo que as sensações comparadas de seus sentidos possam ensinar. Partindo destes juízos ou conceitos, ele não deve empreender nenhum vôo em direção a outros mais elevados e mais distantes, mas deve chegar até aí pela calçada natural e transitável dos conceitos inferiores que o levem mais longe; tudo, porém, em conformidade com aquela aptidão do entendimento que o exercício precedente houver necessariamente produzido nele e não em conformidade com aquela que o professor percebe, ou crê perceber, em si mesmo e que ele erroneamente também pressupõe em seu ouvinte. Em suma, ele não deve ensinar pensamentos, mas a pensar; não se deve carregá-lo, mas guiá-lo, se se quer que ele seja apto no futuro a caminhar por si próprio.

Semelhante didática, exige-a a própria natureza da Filosofia. Mas, como esta é propriamente uma ocupação para a idade adulta apenas, não é de admirar que surjam dificuldades quando se quiser acomodá-la à aptidão menos exercitada da juventude. O adolescente que acabou sua formação escolar estava acostumado a aprender. Ele pensa que, de agora em diante, vai aprender Filosofia, o que porém é impossível, pois agora ele deve aprender a filosofar. Vou me explicar com maior clareza. Todas as ciências que a gente pode em sentido próprio aprender podem se reduzir a dois gêneros: o histórico e o matemático. Entre as primeiras encontram-se, além da História propriamente dita, a História Natural, a Filologia, o Direito Positivo etc etc... Ora, visto que em tudo o que é histórico, a experiência própria ou o testemunho alheio, ao passo que em tudo o que é matemático, a evidência dos conceitos e a infalibilidade da demonstração constituem algo que está de fato dado e de que, por conseguinte, estamos aprovisionados e que é preciso apenas apanhar, nos dois casos é possível aprender, isto é, imprimir seja na memória, seja no entendimento, aquilo que pode ser posto diante de nós como uma disciplina pronta e acabada. Para aprender, pois, a Filosofia, seria preciso que realmente já houvesse uma. Teria que ser possível exibir um livro e dizer: eis aqui sabedoria e discernimento fidedigno; procurai entendê-lo e assimilá-lo, sobre isso edificai no futuro, sereis então filósofos; até que me mostrem semelhante livro de Filosofia, ao qual eu possa recorrer como, por exemplo, ao Políbio, para elucidar um fato histórico, ou ao Euclides, para explicar uma proposição da Matemática, seja-me permitido dizer: que é um abuso de confiança da comunidade, em fez de ampliar a aptidão intelectual dos jovens que nos foram confiados e de formá-los para um discernimento próprio mais amadurecido no futuro, enganá-los com uma Filosofia pretensamente já pronta, que teria sido excogitada por outros em seu benefício, donde resulta um simulacro de ciência que só tem curso como moeda autêntica em certo lugar e entre certas pessoas, mas que é desacreditada em qualquer outra parte. O método peculiar de ensino na Filosofia é zetético, como lhe chamavam os Antigos (de zetein), isto é, investigante, e só se torna dogmático, isto é, decidido, no caso de uma razão mais exercitada em diferentes questões. Também o autor filosófico em que nos baseamos no ensino deve ser considerado, não como o modelo do juízo, mas apenas como o ensejo de julgarmos nós próprios sobre ele e até mesmo contra ele; e o método de refletir e concluir por conta própria é aquilo cujo domínio o aprendiz está a rigor buscando, o qual também é o único que lhe pode ser útil, de tal sorte que os discernimentos decididos que por ventura se tenham obtido ao mesmo tempo tem que ser considerados como conseqüências contingentes dele, conseqüências estas para cuja abundância ele só tem de plantar em si mesmo a raiz fecunda.

Se a isso compararmos o procedimento comum tão diverso dele, poderemos compreender várias outras coisas que de outro modo parecem estranhas aos nossos olhos. Como, por exemplo, por que não há nenhuma espécie de sapiência de ofício onde tantos mestres são encontrados como na Filosofia, e, ao passo que muitos dos que aprenderam História, Direito, Matemática etc se conformam com o fato de apesar disso ainda não terem aprendido o bastante para ensiná-las, por que por outro lado raramente se encontra alguém que não se imagine com toda seriedade capaz, além de sua ocupação restante, de ensinar Lógica, Moral e coisas semelhantes, caso quisesse se meter em tais miudezas. A razão é que, nessas ciências, há um padrão comum, nesta porém cada um tem o seu. Do mesmo modo, ver-se-á claramente que é muito pouco natural que a Filosofia seja um ganha-pão, na medida em que repugna ao seu caráter essencial acomodar-se à ilusão da demanda e à lei da moda, e que só a necessidade, cuja força ainda se faz sentir sobre a Filosofia, pode forçá-la a amoldar-se à forma do aplauso comum. (...)

Um comentário:

  1. Outros textos de Kant sobre educação e ensino: http://www.revistas.usp.br/filosofiaalema/article/view/115993/113665

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