terça-feira, 29 de março de 2011

Dostoievski e o homem do subsolo

Desculpai-me, senhores, por ter-me enredado em filosofias; isto se deu por causa dos meus quarenta anos de subsolo! Permiti-me fantasiar um pouco. Pensai no seguinte: a razão, meus senhores, é coisa boa, não há dúvida, mas razão é só razão e satisfaz apenas a capacidade racional do homem, enquanto o ato de querer constitui a manifestação de toda a vida, isto é, de toda a vida humana, com a razão e com todo o coçar-se. E, embora a nossa vida, nessa manifestação, resulte muitas vezes em algo bem ignóbil, é sempre a vida e não apenas a extração de uma raiz quadrada. Eu, por exemplo, quero viver muito naturalmente, para satisfazer toda a minha capacidade vital, e não apenas a minha capacidade racional, isto é, algo como a vigésima parte da minha capacidade de viver. Que sabe a razão? Somente aquilo que teve tempo de conhecer (algo, provavelmente, nunca chegará a saber; embora isto não constitua consolo, por que não expressá-lo?), enquanto a natureza humana age em sua totalidade, com tudo o que nela existe de consciente e inconsciente, e, embora minta, continua vivendo. Suspeito, senhores, que me olhais com certa compaixão; repetis que é impossível a um homem culto e desenvolvido, numa palavra, a um homem como será o do futuro, querer conscientemente algo desvantajoso para si; isso é matemático. Estou plenamente de acordo; de fato, é matemático. Mas – pela centésima vez vos repito isso – existe um único caso, sim, apenas um, em que o homem pode intencional e conscientemente desejar para si mesmo algo nocivo e estúpido, extremamente estúpido até: ter o direito de desejar para si mesmo algo muito estúpido, sem estar comprometido com a obrigação de desejar apenas o que é inteligente. Isto é de fato estupidíssimo, é um capricho, mas realmente, senhores, talvez seja, para a nossa gente, o mais vantajoso de tudo quanto existe sobre a terra, sobretudo em certos casos. E, em particular, talvez seja mais vantajoso que todas as vantagens, mesmo no caso de nos trazer um prejuízo evidente e de contradizer as conclusões mais sensatas da nossa razão, a respeito de vantagens; pois, em todo caso, conserva-nos o principal, o que nos é mais caro, isto é, a nossa personalidade e a nossa individualidade. Alguns afirmam que isto constitui de fato o que há de mais caro para o homem; a vontade pode, naturalmente, se quiser, concordar com a razão, sobretudo se não abusar desse acordo e se ele for usado moderadamente; isto é útil e, às vezes, até louvável. Mas a vontade, com muita freqüência e, na maioria dos casos, de modo absoluto e teimoso, diverge da razão, e... e... sabeis que até isto é útil e às vezes muito louvável?

Senhores, admitamos que o homem não seja estúpido. (Realmente não se pode, de modo algum, dizer isso a seu respeito, pois, se for estúpido, quem será inteligente, então?) Mas, ainda que não seja estúpido, é mostruosamente ingrato! É ingrato numa escala fenomenal. Penso até que a melhor definição do homem seja: um bípede ingrato. Mas isto ainda não é tudo, ainda não é tudo, ainda não é o seu maior defeito; o seu maior defeito é a sua permanente imoralidade, sim, permanente, desde o Dilúvio Universal até o período schleswig-holsteiniano dos destinos humanos. A imoralidade e, por conseguinte, também a falta de bom senso, pois há muito tempo se sabe que esta provém unicamente da imoralidade. Experimentai lançar um olhar para a história do gênero humano: o que vereis? É grandioso? Vá lá! É, de fato, grandioso. (...) É pitoresco? Vá lá, é pitoresco de fato. (...) É monótono? Vá lá, de fato é monótono: luta-se e luta-se. Luta-se atualmente, já se lutou outrora e tornar-se-á a lutar ainda mais. Concordai comigo: é até demasiado monótono. Numa palavra, pode-se dizer tudo da história universal – tudo quanto possa ocorrer à imaginação mais exaltada. Só não se pode dizer o seguinte: que é sensata. Haveis de engasgar na primeira palavra. E aí está até o que a todo momento se dá: surgem continuamente homens de bons costumes, sensatos, sábios e amantes da espécie humana, que têm justamente como objetivo portar-se, a vida toda, do modo mais moral e sensato, iluminar, por assim dizer, com a sua pessoa, o caminho para o próximo, e precisamente para demonstrar a este que, de fato, se pode viver de modo moral e sensato. E então? É sabido que muitos desses amantes da humanidade, cedo ou tarde, às vezes no fim da existência, traíram-se, dando motivo a anedotas às vezes do gênero mais indecente até. Pergunto-vos agora: o que se pode esperar do homem, como criatura provida de tão estranhas qualidades? Pode-se cobri-lo de todos os bens terrestres, afogá-lo em felicidade, de tal modo que apenas umas bolhazinhas apareçam na superfície desta, como se fosse a superfície da água; dar-lhe tal fartura, do ponto de vista econômico, que ele não tenha mais nada a fazer a não ser dormir, comer pão-de-ló e cuidar da continuação da história universal – pois mesmo neste caso o homem, unicamente por ingratidão e pasquinada, há de cometer alguma ignomínia. Vai arriscar até o pão-de-ló e desejar, intencionalmente, o absurdo mais destrutivo, o mais antieconômico, apenas para acrescentar a toda esta sensatez positiva o seu elemento fantástico e destrutivo. Desejará conservar justamente os seus sonhos fantásticos, a sua mais vulgar estupidez, só para confirmar a si mesmo (como se isso fosse absolutamente indispensável) que os homens são sempre homens e não teclas de piano, que as próprias leis da natureza tocam e ameaçam tocar de tal modo que atinjam um ponto em que não se possa desejar nada fora do calendário.

Mais ainda: mesmo que ele realmente mostrasse ser uma tecla de piano, mesmo que isto lhe fosse demonstrado, por meio das ciências naturais e da matemática, ainda assim ele não se tornaria razoável e cometeria intencionalmente alguma inconveniência, apenas por ingratidão e justamente para insistir na sua posição. E, no caso de não ter meios para tanto, inventaria a destruição e o caos, inventaria diferentes sofrimentos e, apesar de tudo, insistiria no que é seu! Lançaria a maldição pelo mundo e, visto que somente o homem pode amaldiçoar (é um privilégio seu, a principal das qualidades que o distinguem dos outros animais), provavelmente com a mera maldição alcançaria o que lhe cabe: continuaria convicto de ser um homem e não uma tecla de piano! Se me disserdes que tudo isso também se pode calcular numa tabela, o caos, a treva, a maldição – de modo que a simples possibilidade de um cálculo prévio vai tudo deter, prevalecendo a razão –, vou responder-vos que o homem se tornará louco intencionalmente, para não ter razão e insistir no que é seu! Creio nisto, respondo por isto, pois, segundo parece, toda a obra humana consiste apenas em que o homem, a cada momento, demonstre a si mesmo que é um homem e não uma tecla! Ainda que seja com os próprios costados, mas que o demonstre; ainda que seja como um troglodita, mas que demonstre. E, depois disso, como não pecar, como não louvar o fato de que isto ainda não exista e que a vontade ainda dependa o diabo sabe de quê...

Gritais (se ainda vos dignais a dirigir-me o grito) que, no caso, ninguém me priva da minha vontade; que todos se afanam a fim de que, por si mesma, por própria iniciativa, minha vontade coincida com os meus interesses normais, com as leis da natureza e com a aritmética.
– Eh, senhores, como é que se pode ter, no caso, sua própria vontade, quando se trata da tabela e da aritmética, quando está em movimento apenas o dois e dois são quatro? Dois e dois são quatro mesmo sem a minha vontade. Acontece porventura uma vontade própria deste tipo?!

[Fiódor Dostoievski. Memórias do Subsolo. São Paulo: Ed. 34, 2000, p.41-45. Tradução: Boris Schnaiderman]

2 comentários:

  1. "...embora a nossa vida, nessa manifestação, resulte muitas vezes em algo bem ignóbil, é sempre a vida e não apenas a extração de uma raiz quadrada."
    como quase diria fernando pessoa, navegar é preciso, viver é impreciso.

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  2. O homem do subsolo é um reflexo do que se tornou o homem moderno. Guiado por convicções materialistas, orgulhoso de sua ciência, que bota a razão no lugar da intuição, que despreza a introspecção, que instaura uma nova ordem em substituição a obscuridade religiosa, que ignora seus maiores temores substituindo por uma felicidade fundada no consumismo-conformismo. O homem do subsolo é justamente o oposto deste homem de ação moderno, ele se gaba de ter uma consciência superior, orgulha-se disso, mas ao mesmo se menospreza por não conseguir inserir-se nos padrões de nossa sociedade, restando-lhe o subsolo. A diferença deste homem em relação aos demais é que ele reconhece o absurdo de sua existência, restando-lhe a impotência. Este trecho do livro resume a sua busca: "O melhor não é o subsolo, mas algo absolutamente diverso, que jamais hei de encontrar."

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