sábado, 19 de março de 2011

Platão, física e filosofia


[Fédon 96a – 100a]:

(...) A esta altura fez Sócrates uma longa pausa, absorto em alguma reflexão. Depois disse:

– Não é coisa sem importância, Cebes, o que procuras. A causa da geração e da corrupção de todas as coisas, tal é a questão que devemos examinar com cuidado. Se o desejares, poderei relatar-te detalhadamente as minhas experiências a esse respeito. E se vires que uma ou outra coisa do que eu disser é útil aproveita-a para reforçar tua tese.

– Sim – disse Cebes – é justamente o que eu quero.

– Escuta, então, o que vou contar: em minha mocidade senti-me apaixonado por esse gênero de estudos a que dão o nome de “exame da natureza”; parecia-me admirável, com efeito, conhecer as causas de tudo, saber por que tudo vem à existência, por que perece e por que existe. Muitas vezes detive-me seriamente a examinar questões como esta: se, como alguns pretendem, os seres vivos se originam de uma putrefação em que tomam parte o frio e o calor; se é o sangue que nos faz pensar, ou o ar, ou o fogo, ou quem sabe se nada disso, mas sim o próprio cérebro, que nos dá as sensações de ouvir, ver e cheirar, das quais resultariam por sua vez a memória e a opinião, ao passo que destas, quando adquirem estabilidade, nasceria o conhecimento. Examinei, inversamente, a maneira como tudo isso se corrompe, e, também, os fenômenos que se passam na abóbada celeste e na terra. E acabei por me convencer de que em face dessas pesquisas eu era duma inaptidão notável! Vou contar-te uma ocorrência que bem esclarece minha situação naquele tempo. Havia coisas acerca das quais eu antes possuía um conhecimento certo, ao menos na minha opinião, e na dos outros. Pois bem, essa espécie de estudo chegou a produzir em mim uma tal cegueira que desaprendi até aquelas coisas que antes eu imaginava saber, como, por exemplo, o conhecimento que eu julgava ter das causas que determinam o crescimento do homem! Outrora eu acreditava, como é claro para todos, que isso acontece em virtude do comer e do beber: adicionando, pelos alimentos, carne a carne e ossos aos ossos, e em geral substância semelhante a substância semelhante, acontece que o volume, antes pequeno, aumenta, e assim, o homem pequeno se torna grande. Desse modo pensava eu naquela época. Não achas tu que isso era razoável?

– Pelo que me parece, sim – respondeu Cebes.

– Mas repara no seguinte: naquele tempo, eu também achava razoável pensar que quando um homem grande é visto ao lado dum pequeno, ele é de uma cabeça maior do que o pequeno, e, da mesma forma, um cavalo é maior do que outro. E o que é mais evidente: o número “dez” me parecia maior do que o número “oito”, precisamente por causa do acréscimo de “dois”, e o tamanho de dois côvados me parecia ser maior do que o de um côvado por este ser a metade daquele.

– E agora – perguntou Cebes – qual é a tua opinião a esse respeito?

– Por Zeus, atualmente estou muito longe de saber a causa de qualquer dessas coisas! Não sei resolver nem sequer se quando se adiciona uma unidade a outra, a unidade à qual foi acrescentada a primeira torna-se duas, ou se é a acrescentada e a outra que assim se tornam duas pelo ato de adição. Fico admirado! Quando as duas unidades estavam separadas uma da outra, cada uma era uma, e não havia dois; logo, porém, que se aproximaram uma da outra, esse encontro tornou-se a causa da formação do dois. Também não entendo por que motivo, quando alguém divide uma unidade, esse ato de divisão faz com esta coisa que era uma se transforme pela separação em duas! Essa coisa que produz duas unidades é contrária à outra: antes, acrescentou-se uma coisa a outra – agora, afasta-se e separa-se uma de outra. Nem sei por que um é um! Enfim, e para dizer tudo, não sei absolutamente como qualquer coisa tem origem, desaparece ou existe, segundo este procedimento metodológico. Escolhi então outro método, pois, de qualquer modo, este não me serve. Ora, certo dia ouvi alguém que lia um livro de Anaxágoras. Dizia este que “o espírito é o ordenador e a causa de todas as coisas”. Isso me causou alegria. Pareceu-me que havia, sob certo aspecto, vantagem em considerar o espírito como causa universal. Se assim é, pensei eu, a inteligência ou espírito deve ter ordenado tudo e tudo feito da melhor forma. Desse modo, se alguém desejar encontrar a causa de cada coisa, segundo a qual nasce, perece ou existe, deve encontrar, a respeito, qual é a melhor maneira seja de ela existir, seja de sofrer ou produzir qualquer ação. E pareceu-me ainda que a única coisa que o homem deve procurar é aquilo que é melhor e mais perfeito, porque desde que ele tenha encontrado isso, necessariamente terá encontrado o que é o pior, visto que são objetos da mesma ciência.

Pensando desta forma, exultei acreditando haver encontrado em Anaxágoras o explicador da causa, inteligível para mim, de tudo que existe. Esperava que ele iria dizer-me, primeiro, se a terra é plana ou redonda, e, depois de o ter dito, que à explicação acrescentasse a causa e a necessidade desse fato, mostrando-me ainda assim como é ela a melhor. Esperava também que ele dizendo-me que a terra se encontra no centro do universo, ajuntasse que, se assim é, é porque é melhor para ela estar no centro. Se me explicasse tudo isso, eu ficaria satisfeito e nem sequer desejaria tomar conhecimento de outra espécie de causas. Naturalmente, a propósito do sol eu estava pronto também a receber a mesma espécie de explicação, e da mesma forma para a lua e os outros astros, assim como também a respeito de suas velocidades relativas como de suas revoluções e de outros movimentos que lhes são próprios. Nunca supus que depois de ele haver dito que o Espírito [Nous] os havia ordenado, ele pudesse dar-me outra causa além dessa que é a melhor e que é a que serve a cada uma em particular assim como ao conjunto.

Grandes eram as minhas esperanças! Pus-me logo a ler, com muita atenção e entusiasmo os seus livros. Lia o mais depressa que podia a fim de conhecer o que era o melhor e o pior. Mas, meu grande amigo, bem depressa essa maravilhosa esperança se afastava de mim! À medida que avançava e ia estudando mais e mais, notava que esse homem não fazia nenhum uso do espírito nem lhe atribuía papel algum como causa na ordem do universo, indo procurar tal causalidade no éter, no ar, na água, em muitas outras coisas absurdas! Parecia-me que ele se portava como um homem que dissesse que Sócrates faz tudo o que faz porque age com seu espírito; mas que, em seguida, ao tentar descobrir as causas de tudo o que faço, dissesse que me acho sentado aqui porque meu corpo é formado de ossos e tendões, e os ossos são sólidos e separados uns dos outros por articulações, e os tendões contraem e distendem os membros, e os músculos circundam os ossos com as carentes, e a pele a tudo envolve! Articulando-se os ossos em suas articulações, e estendendo-se e contraindo-se, sou capaz de flexionar os meus membros, e por esse motivo é que estou sentado aqui, com os membros dobrados. Tal homem diria coisas mais ou menos semelhantes a propósito de nossa conversa, e assim é que consideraria como causas dela a voz, o ar, o ouvido e muitas outras coisas – mas, em realidade, jamais diria quais são as verdadeiras causas disso tudo: estou aqui porque os atenienses julgaram melhor condenar-me à morte, e por isso pareceu-me melhor ficar aqui, e mais justo aceitar a punição por eles decretada. Pelo Cão. Estou convencido de que estes tendões e estes ossos já poderiam há muito tempo se encontrar perto de Mégara ou entre os Beócios, para onde os teria levado uma certa concepção do melhor, se não me tivesse parecido mais justo e mais belo preferir à fuga e à evasão a aceitação, devida à Cidade, da pena que ela me prescreveu!

Dar o nome de causas a tais coisas seria ridículo. Que se diga que sem ossos, sem músculos e outras coisas eu não poderia fazer o que me parece, isso é certo. Mas dizer que é por causa disso que realizo as minhas ações e não pela escolha que faço do melhor e com inteligência – essa é uma afirmação absurda. Isso importaria, nada mais nada menos, em não distinguir duas coisas bem distintas, e em não ver que uma coisa é a verdadeira causa e outra aquilo sem o que a causa nunca seria causa. Todavia, é a isso que aqueles que erram nas trevas, segundo me parece, dão o nome de causa, usando impropriamente o termo. O resultado é que um deles, tendo envolvido a terra num turbilhão, pretende que seja o céu o que a mantém em equilíbrio, ao passo que para outro ela não passa duma espécie de gamela, à qual o ar serve de base e de suporte. Mas quanto à força, que a dispôs para que essa fosse a melhor posição, essa força, ninguém a procura; e nem pensam que ela deva ser uma potência divina. Acreditam, ao contrário, haver descoberto um Atlas mais forte, mais imortal e mais garantidor da existência do universo do que esse espírito; recusam-se a aceitar que efetivamente o bom e o conveniente formem e conservem todas as coisas. Ardentemente desejaria eu encontrar alguém que me ensinasse o que é tal causa! Não me foi possível, porém, adquirir esse conhecimento então, pois nem eu mesmo o encontrei, nem o recebi de pessoa alguma. Mas quererias, estimado Cebes, que descrevesse a segunda excursão que realizei em busca dessa causalidade?

– É impossível que alguém o deseje mais do que eu – respondeu Ceres.

– Então – prosseguiu Sócrates – minha esperança de chegar a conhecer os seres começava a esvair-se. Pareceu que deveria acautelar-me, a fim de não vir a ter a mesma sorte daqueles que observam e estudam um eclipse do sol. Algumas pessoas que assim fazem estragam os olhos por não tomarem a precaução de observar a imagem do sol refletida na água ou em matéria semelhante. Lembrei-me disso e receei que minha alma viesse a ficar completamente cega se eu continuasse a olhar com os olhos para os objetos e tentasse compreendê-los através de cada um de meus sentidos. Refleti que devia buscar refúgio nas idéias e procurar nelas a verdade das coisas. É possível, todavia, que esta comparação não seja perfeitamente exata, pois nem eu mesmo aceito sem reservas que a observação ideal dos objetos – que é uma observação por imagens – seja melhor do que aquela que deriva de uma experiência dos fenômenos. Entretanto, será sempre para o lado daquela que me inclinarei. Assim, depois de haver tomado como base, em cada caso, a idéia, que é, a meu juízo, a mais sólida, tudo aquilo que lhe seja consoante eu o considero como sendo verdadeiro, quer se trate de uma causa ou de outra qualquer coisa, e aquilo que não lhe é consoante, eu o rejeito como erro. Vou, porém, explicar com mais clareza o que estou a dizer, pois me parece que não o compreendeste bem.

[Adaptado de: Platão. Diálogos. Tradução: Jorge Paleikat e João Cruz Costa. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Ed. Abril, 1972.]

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